As leis não garantem direitos automáticos, mas a convivência pode gerar efeitos jurídicos importantes para madrastas e padrastos
Thainá Batista* Publicado em 12/09/2025, às 06h00
As famílias contemporâneas se apresentam de diversas formas, e uma delas é a chamada família recomposta, em que madrastas e padrastos passam a integrar a vida cotidiana de crianças e adolescentes. A presença dessas figuras desperta muitas dúvidas, sobretudo no campo jurídico, já que não existe, na lei, um rol expresso de direitos e deveres equiparados aos dos pais biológicos.
O Código Civil e o Estatuto da Criança e do Adolescente não atribuem automaticamente às madrastas e aos padrastos a responsabilidade legal sobre os filhos do companheiro. No entanto, a realidade da convivência diária mostra que esses laços vão muito além da formalidade. É nesse ponto que o Direito de Família, cada vez mais orientado pelo princípio da socioafetividade, reconhece que o afeto e o cuidado podem gerar efeitos jurídicos.
Ainda que não possuam o chamado poder familiar, madrastas e padrastos devem respeitar as decisões dos pais biológicos, mas podem, naturalmente, auxiliar no dia a dia da criança, seja nos cuidados com saúde, escola ou lazer. A Constituição Federal estabelece, em seu artigo 227, o dever de toda a sociedade, incluindo a família em sentido amplo, de zelar pela dignidade, pelo melhor interesse e pela proteção integral de crianças e adolescentes. Assim, quem convive de forma próxima e constante também assume, de certo modo, esse dever de cuidado.
Em algumas situações excepcionais, quando existe uma relação consolidada e reconhecida socialmente, madrastas e padrastos podem até ser responsabilizados financeiramente, assumindo a obrigação de prestar alimentos. Isso ocorre quando a Justiça entende que o vínculo socioafetivo se equiparou ao biológico, trazendo consigo responsabilidades concretas.
Outro aspecto relevante é a possibilidade da maternidade e da paternidade socioafetiva coexistirem com a filiação biológica. Isso significa que a criança pode ter, juridicamente, dois pais ou duas mães: um vínculo de origem biológica e outro oriundo da relação afetiva, ambos reconhecidos e válidos perante a lei. Nesses casos, a Justiça tem reafirmado que não há exclusão entre uma forma de filiação e outra, mas, sim, a soma de vínculos que refletem a realidade vivida pela criança.
Outro ponto de destaque está no direito de convivência. Muitas vezes, quando ocorre a separação do casal, o rompimento também pode afastar o padrasto ou a madrasta da criança. Se houver prova de que o vínculo estabelecido é significativo e que a manutenção da convivência é benéfica para o menor, a Justiça pode autorizar a continuidade desse contato, evitando prejuízos emocionais.
Há ainda a possibilidade da chamada adoção unilateral, quando o padrasto ou madrasta decide formalizar juridicamente a relação com o filho do companheiro. Nesse caso, é necessário o consentimento do outro genitor e a homologação judicial, o que transforma o vínculo socioafetivo em um vínculo de filiação pleno, com todos os direitos e deveres de pai ou mãe.
O envolvimento positivo de madrastas e padrastos deve fortalecer os vínculos familiares e nunca ser usado como instrumento de afastamento entre pais e filhos.
Portanto, madrastas e padrastos não são meros figurantes nas famílias recompostas. A legislação, acompanhada da evolução da jurisprudência, já reconhece que a convivência, o cuidado e o afeto podem gerar efeitos jurídicos relevantes. O mais importante é que, em qualquer situação, prevaleça sempre o interesse da criança e do adolescente, de modo que sejam preservados o desenvolvimento saudável, a estabilidade emocional e os vínculos afetivos que lhes proporcionam segurança.
Sob a ótica psicológica, especialistas apontam que crianças em lares recompostos podem experimentar sentimentos de insegurança, medo de rejeição e até culpa. Por isso, é indispensável que a atuação de madrastas e padrastos seja permeada por respeito, diálogo e reconhecimento dos laços originais, de forma a transmitir à criança que o amor não é um recurso limitado, mas algo que pode ser multiplicado.
No campo jurídico, esse equilíbrio é fundamental para evitar conflitos de guarda, visitas e pensão, em que por vezes a figura do padrasto ou madrasta é manipulada como justificativa para tensionar o relacionamento entre os genitores. Nesses casos, os tribunais têm reforçado que o ingresso de um novo parceiro na vida do pai ou da mãe não altera os deveres parentais originários, e que qualquer tentativa de usar essa nova realidade como barreira ao convívio configura violação aos direitos fundamentais da criança.
Assim, a presença de madrastas e padrastos deve ser valorizada como oportunidade de ampliar a rede de apoio afetivo, reforçando a noção de família como espaço plural, dinâmico e voltado ao cuidado integral da criança e do adolescente.
*Thainá Batista é Advogada de Família