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Quando nasce uma nova família

Toda adoção é também o nascimento de uma nova família — construída pelo amor, não pela genética

Antoune Nakkhle* Publicado em 22/10/2025, às 06h00

Mão de criança preta sobre mão de adulto branca
Ter um filho por adoção, com outros traços físicos e de outra cor; com um pai e uma mãe; com dois pais ou duas mães ou mesmo com uma mãe ou pai solo – tudo é família. - Foto: Canva Pro

A decisão de ser pai por adoção, independentemente da cor da criança, é uma escolha que transcende questões biológicas e sociais, refletindo um desejo genuíno de paternidade.

A adoção é frequentemente cercada de preconceitos, onde a sociedade impõe a ideia de que filhos devem se parecer com os pais, o que limita a compreensão do amor familiar.

A chegada de uma criança por adoção cria uma nova família, e a verdadeira conexão entre pai e filha vai além da genética, sendo baseada em amor e empatia, apesar dos desafios que podem surgir.

Resumo gerado por IA

Outro dia me peguei questionando o que sempre me perguntam: afinal, por que eu quis ser pai por adoção? E por que decidi ser pai de uma criança preta?

A pergunta está errada. Correto é: por que eu quis ser pai? Isso, sim, faz sentido. Não é importante saber se me tornei pai por via da biologia, por via da adoção, muito menos se minha filha é branca ou preta ou se minha mulher é negra. Ser pai é maior do que tudo.

—Como assim? Faz toda a diferença, gente! Uma coisa é ter um filho de verdade, outra coisa é ter um menino adotado e negrinho – porque geralmente vem uma criança preta, não é? É muito diferente.

Esta é uma das ciladas preconceituosas e racistas que nossa sociedade gentilmente nos oferece. Ou melhor: que nossa sociedade agressivamente nos impõe. E, quando mordemos a isca, por vezes acreditamos nessa falácia de que para ser filho precisa ser biológico e se parecer com o pai ou com a mãe – ah, e que eles, os pais, devem ser um casal heterossexual.

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As pessoas adotam filhos pelas mais diversas razões – se eu começasse a enumerar aqui, não pararia mais. É muito perigoso aceitar essa “isca” social a que me refiro, pois isca não alimenta, captura e pode matar.

O que quero dizer é que o desejo verdadeiro de ser pai ou mãe vem de dentro e não deve ser influenciado por valores externos que nos rodeiam. Isso pode parecer ilusão. Vivemos em sociedade, eu sei. Mas podemos nos dar o direito de decidir por escolhas íntimas, como ser ou não pai, se é ou não essencial que meu filho seja biológico, independente do que o mundo no qual estamos inseridos insista em ditar a toda hora o que é certo ou errado.

Não me vem à cabeça como dizer a você que me lê, objetivamente, o motivo pelo qual decidi adotar, além do que já relatei aqui na coluna em outros textos. Mas sei que sempre quis ser pai, não me importava de que forma. Essa certeza de que o caminho pelo qual eu me tornaria pai não era algo pré-determinado me trazia uma incrível sensação de liberdade e isso aumentava ainda mais minha vontade de exercer a paternidade.

Só sei que, independente de como minha vida se desenhou, das escolhas que fiz no meio de um caminho cheio de imprevistos, resolvi ser pai. Fui eu que me desafiei com esta escolha. Escolhi viver o amor entre pai e filha sem qualquer afinidade genética. Fiz isso porque acreditava e até hoje confio neste amor que nada tem a ver com hereditariedade.

Ainda não é isso, falta mais coisa, preciso me revirar mais um tanto por dentro. Não sei responder a você que me lê agora a pergunta que dá início a este texto. Tem dias que é assim. A gente propõe uma pergunta e quando vê, se dá conta de que não sabe a resposta. Preciso saber o motivo?

—Será possível que para tudo tem que ter um motivo? É porque é e pronto, quanto mimimi! Você quis ter um filho como se fosse seu, concorda?

Veja, mais uma isca!

—Acontece, senhora, que algumas situações são contraditórias e me parecem sem sentido. Acompanhe comigo: quando uma pessoa se interessa afetivamente por outra (por um parceiro amoroso) ela sempre é diferente da gente, óbvio, não é da nossa família, não se parece fisicamente com a gente. Quem de fato ama um(a) amigo(a) também entende o que estou dizendo. Então, por que a gente acha estranho amar esse filho que é tão diferente da gente? Eu não quis ter um filho como se fosse meu. Eu quis ter um(a) filho(a).

A chegada de um filho traz junto com ele uma nova família

Quando um filho chega nasce uma nova família. A que eu escolhi ter é assim. Minha filha é negra e é a minha cara – é o que muitos dizem. Tem o meu jeito de olhar. Uma forma de encarar os problemas parecida com nosso jeito (o da mãe dela e o meu). Tem excelente caráter. Tem empatia com o próximo. Essas são as principais semelhanças que me interessam. O resto é perfumaria falsificada.

Afinal, do que estamos falando? Sim, eu estava me perguntando por que eu quis ter uma filha negra vinda por adoção.

Aí, chega uma pessoa com nova isca:

—Se é para adotar eu quero uma criança bem pretinha!

—O que é isso? Que fala preconceituosa é essa?

—Só estou sendo sincero! Prefere a hipocrisia? Tem mais: ter o seu jeitinho de olhar é uma coisa, parecer mesmo com você é outra bem diferente... Deixa a metáfora de lado, Sr. Evoluído. Já que é para ter um filho diferente de mim, que não seja sangue do meu sangue, vou adotar uma pretinha, bem diferente mesmo; se não for assim não vale.

—Sua fala é bem preconceituosa. Não se trata de escolher uma laranja em um cesto. Estamos falando de uma pessoa como você.

—Pronto! Agora vai falar que o preconceito tem várias camadas. Que chatice!

A ideia de me tornar pai tem relação direta com o nascimento de uma nova família. Sempre quis ter filhos.

Ter um filho por adoção, com outros traços físicos e de outra cor; com um pai e uma mãe; com dois pais ou duas mães ou mesmo com uma mãe ou pai solo – tudo é família. Os desafios? São enormes, sempre.

A adoção pode nos trazer surpresas e, nem sempre, agradáveis. Na filiação biológica também há outras questões, pois cada um de nós, enquanto filhos, trazemos conosco nossas particularidades e traumas.

Quando minha filha chegou por adoção, logo que a vi, pensei: essa é minha filha e ela já tem sua história própria. Acabo de conhecê-la. Ganhei uma nova família, eu disse naquela manhã fria de 17 de junho.

Genética é parte fundamental da vida, inegável. Mas não é garantia de felicidade em todos os campos da vida de uma pessoa.

Eu quis ter uma filha porque sempre quis ser pai e formar uma nova família. Essa é a maior aventura da minha vida.

*Antoune Nakkhle é jornalista, assessor de comunicação e imagem e pai da Gabriela, atualmente com 21 anos. Um pai branco de filha preta.

Se quiser falar com o autor: paibrancofilhapreta@gmail.com

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