Mariana Kotscho
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Do Colo da Terra: um convite para repensar a educação

O longa metragem Do Colo da Terra revelam os aprendizados com crianças indígenas de quatro povos

Paula Mendonça* Publicado em 29/10/2025, às 06h00

Homem indígena navega no rio em pequena canoa
O filme convida à reflexão de que os saberes indígenas e seus modos de aprender podem ampliar as possibilidades pedagógicas - Foto: Canva Pro

O longa-metragem 'Do colo da terra', lançado no Itaú Cultural, explora a conexão entre crianças indígenas e a natureza, destacando a visão do filósofo Ailton Krenak sobre a Terra como um ser que cuida de nós. O filme, descrito como um poema visual, retrata a vivência de crianças de quatro povos indígenas e suas interações com o ambiente ao redor.

A narrativa do filme é enriquecida por reflexões de educadores indígenas, que enfatizam a importância de uma relação respeitosa com a Terra, invertendo a perspectiva tradicional de que os humanos devem cuidar do meio ambiente. A Lei 11.645/2008, que inclui a história e cultura indígena no currículo escolar, é citada como um passo importante para reconhecer e valorizar esses saberes.

O Instituto Alana e outros defensores da educação propõem integrar mais experiências com a natureza nas escolas, visando promover um aprendizado que respeite as cosmovisões indígenas. O filme está disponível na plataforma Itaú Cultural Play e acompanha materiais de apoio para educadores, incentivando uma reflexão sobre novas práticas pedagógicas que valorizem a relação com a Terra.

Resumo gerado por IA

“Do colo da terra”, o recém-lançado longa-metragem do Território do Brincar, que integrou a ocupação Ailton Krenak no Itaú Cultural, é um convite à conexão profunda com a Terra e com todos os seres da natureza. Ailton Krenak, filósofo e ambientalista indígena, definiu o filme como poema visual. As cenas que transcorrem nas telas revelam os fazeres, saberes e os aprendizados das e com as crianças indígenas de quatro povos – Guarani Kaiowá, Guarani Nhandeva, Khisêtjê e Baniwa –, registradas pelos olhares sensíveis dos diretores David Vêluz e Renata Meirelles.   

Por que existimos? Quem somos nós? “Somos filhos de pássaros, filhos de animais, filhos das árvores, somos filhos de todas as coisas”, explica Ntoni, pajé do povo Khisêjdê, no filme. A cena que se segue mostra o nascimento de um bebê, os cuidados com a limpeza do seu corpo e, em seguida, o acolhimento nos braços da mãe para ser alimentado no peito. Ao mesmo tempo em que evidencia a fragilidade inerente do corpo recém-nascido, o gesto também expressa o início do vínculo entre mãe e filho, que floresce nos primeiros cuidados.

Gersem Baniwa, educador indigena, ao refletir sobre a expressão “colo da terra” durante o debate de pré-estreia do filme, inverte a perspectiva de que somos nós, humanos, quem cuidamos ou deveríamos cuidar da Terra. Ele propõe o sentido inverso: é a Terra quem cuida, oferecendo seu colo e alimento para acolher a nossa existência. Ele defende a ideia de “colo” como uma das melhores formas de expressar a relação dos povos indígenas com a Terra. “Não há outra palavra ou termo que possa traduzir melhor a relação de nós, indígenas, com a natureza. A ideia do ‘colo’ é, para mim, uma expressão profunda.”

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Somos filhos de todas as coisas. É também por isso que Krenak subiu descalço ao palco do evento de pré-estreia: ao tirar os sapatos, ele diz que lembramos da importância de pisar devagar sobre a terra. A Terra tem vida, tem alma, assim como todos os seres que são filhos dela – incluindo nós, humanos. Somos dotados de vida, conectados uns aos outros por relações profundas que passam pelo reconhecimento de uma filiação comum com a Terra. E é nessa relação que se fundamenta uma noção de respeito e cuidado mútuo.

O aprendizado dessa relação se revela na experiência das crianças ao longo de todo o filme. É por meio de sua vivência nos terreiros das aldeias – circulando livremente pelos espaços e integrando-se à convivência com pares e adultos – que assistimos a cenas delas imersas em festas, celebrações, na produção de cestarias, na roça e na cozinha, sempre permeadas pelo brincar livre junto à natureza.

As crianças, integradas a todas atividades, aprendem fazendo, observando, ouvindo e praticando. A experiência se dá ao estabelecer relações com todos os seres que a cercam: elas brincam nas águas, árvores e na terra com outras crianças e também com os mais velhos. São eles, inclusive, que conduzem momentos de ensinamento retratados no filme, promovendo vivências que fortalecem a relação contínua de pertencimento da criança com a natureza, com a sua língua e sua cultura. E o que o universo das infâncias indígenas nos ensina sobre a experiência de aprender? O que os modos de cuidar de si, do outro e da Terra nos convoca a pensar sobre nós mesmos?

Nas escolas, muitas vezes aprendemos que a natureza é um recurso, uma matéria prima para produzirmos algo. A partir dessa perspectiva, se estabelece a ideia de que a natureza está a serviço do ser humano. Criamos, assim, uma noção que nos distancia dela. Nossa existência e a produção do que precisamos para viver passam a ser vistas sob uma perspectiva utilitária. Dessa forma, o aprendizado na escola acontece muito mais no sentido de compreender como a natureza pode favorecer a nossa existência, do que perceber como podemos fazer parte dessa delicada teia de relações que promove a vida.

A Lei 11.645/2008, que estabelece a obrigatoriedade do ensino das culturas e histórias afro-brasileiras e indígenas no currículo nacional, é uma reparação histórica sobre o modo como essas populações foram equivocadamente tratadas na tradição escolar e nos livros didáticos até meados dos anos 2000. Além de alterar narrativas que condicionam a existência de povos indígenas à chegada dos europeus, e da população negra à escravização de seus corpos, a lei propõe o reconhecimento dos conhecimentos dessas populações como saberes que ampliam e pluralizam as formas de ver e se relacionar com o mundo.

A implementação dessa lei não apenas traz os conteúdos dessas etnias ao currículo, mas também as cosmovisões que articulam seus modos de aprender, incluindo a dimensão do espírito, do corpo, da experiência e da liberdade. No filme, um ancião baniwa ensina as crianças a fazer um cesto e diz: “Você tem que deixar sua mente aberta e o corpo tranquilo, não pode deixar os olhos sem foco. Quando está triste, é difícil aprender.” Como podemos proporcionar nas escolas experiências de alegria, atenção e aprendizado a partir das práticas culturais dos povos indígenas? Como podemos trazer para o cotidiano das escolas outros modos de experimentar a construção do saber?

Longe de querer trazer respostas, essas perguntas nos convidam a não naturalizar a teoria como o único cânone de conhecimento válido. Os saberes indígenas e seus modos de aprender ampliam as possibilidades pedagógicas, inspirando a construção de novos paradigmas para uma educação genuinamente brasileira. Podemos falar em pedagogias originárias? Talvez esse seja um modo de caminhar de volta à nossa ancestralidade, nos permitindo construir novas perspectivas para o futuro.

Precisamos, como aponta Krenak, nutrir a experiência de um corpo vivo em uma terra viva. Para isso, Gersem Baniwa traz a importância de levar mais natureza aos espaços escolares, permitindo que crianças vivenciem essa relação em seu cotidiano, especialmente nas cidades. O Instituto Alana atua para que a experiência com e na natureza seja garantida como direito de crianças e adolescentes. O direito a um meio ambiente saudável é assegurado pela Constituição Federal em seu artigo 225. Proteger os territórios e as infâncias indígenas é também proteger saberes dos quais ainda temos muito a aprender.

“Do colo da terra”, já disponível na plataforma Itaú Cultural Play (https://www.itauculturalplay.com.br/), e acompanhado de um material de apoio para educadoras e educadores, convida à reflexão sobre práticas pedagógicas que ajudem a construir outros caminhos. Como diz o pesquisador indígena Anastácio Peralta, cujo depoimento inspirou o título do filme: “Cuidar da Terra é também cuidar de nós. Minha preocupação hoje é que a Terra está com febre, com o aquecimento global. Se a Terra adoece, nós também adoecemos. Por isso, é urgente cuidar da Terra, das crianças e de nós mesmos. Cuidar da Terra é cuidar da nossa alma.”

* Paula Mendonça é pesquisadora das infâncias, mestre em educação, codiretora do curta-metragem Waapa e participou na assessoria técnica e pesquisa sobre infâncias indígenas no longa-metragem “Do colo da terra”. É especialista em educação, natureza e culturas no Instituto Alana.