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Adultização precoce: quando a infância é roubada

Advogada e psicóloga lançam olhar sobre a questão da adultização precoce de crianças

Redação* Publicado em 03/09/2025, às 06h00

A psicóloga Karine Brock - Divulgação
A psicóloga Karine Brock - Divulgação

Brincar, inventar histórias, sentir tédio e transformá-lo em criatividade. A infância deveria ser marcada por leveza e descobertas. Mas, cada vez mais, meninos e meninas são lançados a papéis que não correspondem à sua idade. É a chamada adultização precoce, um fenômeno silencioso que tem preocupado especialistas.

Para a psicóloga cognitivo-comportamental, Karine Brock, o primeiro passo é diferenciar autonomia saudável de adultização. “Autonomia é quando a criança realiza tarefas compatíveis com sua fase, como escolher a roupa, escovar os dentes ou guardar os brinquedos. Isso fortalece sua independência sem sobrecarga. Já a adultização ocorre quando ela é colocada em papéis que não são dela, como cuidar de irmãos sozinha, assumir preocupações financeiras da família ou reproduzir comportamentos adultos em roupas, danças e internet," explica ela.

Esse processo, muitas vezes naturalizado, pode deixar cicatrizes. “A criança passa a acreditar que seu valor está no que faz, e não em quem é. Isso fragiliza autoestima, identidade e pode gerar ansiedade, estresse e até depressão já na infância. Na vida adulta, aumenta a rigidez, a cobrança interna e a vulnerabilidade a relacionamentos abusivos," alerta Karine.

A perda do espaço para o brincar também compromete habilidades essenciais, como criatividade, empatia e capacidade de lidar com frustrações. “Sem essas experiências, o adulto pode ter dificuldade em sentir prazer em coisas simples e em manter relações equilibradas," acrescenta.

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A advogada Rafaela Queiroz reforça que a adultização não é apenas um risco emocional, mas também uma violação legal. “Ela pode ser enquadrada como forma de violência ou negligência pelo Estatuto da Criança e do Adolescente (ECA), que garante proteção integral aos menores. Desde a Constituição Federal, crianças e adolescentes têm prioridade absoluta em seus direitos, e todos os responsáveis — pais, familiares, professores, cuidadores — têm dever legal de protegê-los," destaca a profissional.

Segundo a especialista, a adultização frequentemente se manifesta na exposição exagerada em redes sociais, prática que pode configurar crimes como aliciamento, exploração infantil online e até exploração do trabalho infantil, quando há monetização de perfis. “Os pais não são titulares absolutos dos direitos de personalidade dos filhos. A criança tem direito à imagem, à privacidade e à intimidade, podendo inclusive mover ações por danos morais contra os próprios responsáveis," explica Rafaela.

A advogada lembra ainda que escolas, profissionais de saúde e qualquer cidadão têm obrigação de denunciar sinais de adultização ou exploração infantil. As denúncias podem ser feitas ao Conselho Tutelar, Ministério Público, Polícia Militar, delegacias especializadas ou pelo Disque 100. “Proteger a infância é um dever legal de toda a sociedade," reforça.

Entre o psicológico e o jurídico: a infância que precisa ser preservada.

Seja pelo peso emocional descrito por Karine Brock ou pelas consequências legais apontadas por Rafaela Queiroz, a mensagem é clara: adultização é um tipo de violência que rouba a infância.

A criança precisa de espaço para brincar, descansar, errar e experimentar — não de responsabilidades que não pertencem à sua idade. “Enquanto a autonomia fortalece o desenvolvimento, a adultização sobrecarrega e compromete o futuro”, conclui Karine. E Rafaela complementa: “quando a infância é violada, não estamos apenas diante de uma falha moral ou afetiva, mas de um crime. A lei existe para lembrar que a criança não pode ser vista como miniadulto, muito menos como produto.”

*Com edição de Marina Yazbek Dias Peres