Aprenda a distinguir entre promover autonomia saudável e abandonar a criança em situações desafiadoras
Yolanda Basílio* Publicado em 26/02/2025, às 06h00
Na primeira infância, o processo de autonomia se desenvolve conforme a criança amadurece neurologicamente, isso porque, lá no começo da vida, ela depende totalmente do outro, mas, à medida que seu cérebro se desenvolve – especialmente as conexões no córtex pré-frontal, responsável pelo planejamento e autocontrole – começa a demonstrar desejo por independência. Esse desejo não é totalmente nato, ele surge da interação com o ambiente e do incentivo que recebe.
Na abordagem Pikler-Lóczy, a autonomia motora da criança é respeitada desde o nascimento, permitindo que ela desenvolva segurança em seus próprios movimentos sem interferências desnecessárias do adulto. Emmi Pikler enfatizava que, quando o bebê tem liberdade de movimento em um ambiente seguro e preparado, ele aprende a confiar no próprio corpo e a avaliar riscos de forma natural, sem precisar de constantes intervenções ou alertas ansiosos dos adultos. Demonstrar medo excessivo diante das iniciativas da criança pode transmitir insegurança e fazer com que ela duvide de suas próprias capacidades.
Neste caso, em vez de restringir seus movimentos ou antecipar possíveis quedas, o papel do adulto é oferecer um ambiente seguro e confiável para que ela possa explorar de maneira autônoma. Isso significa disponibilizar espaços adequados, com brinquedos e desafios compatíveis com sua fase de desenvolvimento, e estar presente de forma atenta, mas sem interferir antes do necessário.
Algumas formas de encorajar a criança sem passar insegurança:
Ao confiar no potencial da criança e oferecer um ambiente seguro para suas descobertas, fortalecemos sua autonomia e autoconfiança. A presença do adulto não deve ser para impedir, mas para garantir que ela tenha condições de explorar com segurança e desenvolver um senso genuíno de competência e capacidade.
Autonomia não é abandono, cuidado!
A verdadeira autonomia infantil não significa deixar a criança resolver tudo sozinha, mas sim garantir que ela tenha suporte adequado para crescer com segurança e confiança. Crianças pequenas precisam dos adultos para se desenvolverem de maneira saudável, e quando lhes é exigido mais do que podem lidar para a idade, isso não representa autonomia – representa abandono. Muitas vezes, ouvimos frases como “deixa chorar que aprende” ou “se vira sozinho que é assim que cresce”, mas a realidade é que o desenvolvimento infantil acontece a partir da relação com um adulto responsivo, que acolhe, orienta e oferece suporte emocional e prático. Quando uma criança é privada desse suporte, ela não se torna mais autônoma – pelo contrário, pode desenvolver insegurança, ansiedade e dificuldades na autorregulação.
Como diferenciar autonomia de abandono?
Exigir demais de uma criança não a torna mais forte – a sobrecarrega e pode gerar frustrações desnecessárias. Autonomia se constrói passo a passo, dentro de um vínculo seguro e afetuoso, onde o adulto oferece a base para que a criança, aos poucos, descubra suas próprias capacidades sem se sentir sozinha e desamparada.
E o terceiro filho, se cria sozinho mesmo?
Não é incomum ouvir o ditado “o terceiro filho se cria sozinho”. Muitas vezes, isso acontece porque os pais costumam estar mais confiantes, menos ansiosos, com menos tempo para um olhar exclusivo. A criança pode, sim, desenvolver mais autonomia, mas isso também exige atenção: sem um suporte adequado, ela pode ter que lidar com desafios antes de estar emocionalmente pronta, o que pode gerar inseguranças ou necessidade de chamar atenção de outras formas.
Essa “autonomia” se torna ainda mais preocupante quando uma criança assume responsabilidades que não condizem com sua idade e desenvolvimento. Em muitas famílias, por necessidade, os filhos mais velhos acabam cuidando dos mais novos, e é importante olhar para essa realidade com acolhimento, sem julgamentos, reconhecendo os desafios que essas famílias enfrentam.
Crianças precisam de tempo para serem crianças. Quando são sobrecarregadas com tarefas que exigem maturidade emocional e física além do que podem lidar, podem desenvolver um senso precoce de responsabilidade que, embora traga aprendizados, também pode gerar cansaço, estresse e uma inversão de papéis dentro da família. Isso não significa que irmãos mais velhos não possam participar dos cuidados dos menores, mas sim que essa participação precisa ser equilibrada, respeitosa e compatível com sua idade. O ideal é que esse envolvimento ocorra de forma leve e compartilhada, sem substituir o papel do adulto como responsável principal.
Para famílias que vivem essa realidade, um olhar cuidadoso pode fazer a diferença. Sempre que possível, é importante garantir que a criança mais velha tenha momentos de descanso, lazer e oportunidades de receber cuidado também. Afinal, a autonomia verdadeira se constrói com suporte, e toda criança tem o direito de crescer dentro de um ambiente onde possa explorar, aprender e se desenvolver sem carregar responsabilidades que não são suas.
Incentive, acolha e conecte-se:
A autonomia não se constrói com afastamento, mas sim com segurança emocional e respeito ao tempo da infância. Isso significa permitir que a criança experimente e tente fazer as coisas sozinha, sem apressá-la e sem negar apoio quando ela precisar. Pequenos gestos no dia a dia fazem a diferença, como permitir que escolha sua roupa, incentive sua participação nas rotinas diárias e respeite seu ritmo para conquistar novas habilidades.
A abordagem Pikler-Lóczy enfatiza a importância da liberdade de movimento desde bebê, permitindo que a criança explore suas capacidades de forma natural e sem interferências desnecessárias. No entanto, essa autonomia só é genuína quando a criança se sente segura na relação com o adulto. Isso acontece nos momentos de cuidado, como a troca de fralda, o banho e a alimentação, onde a presença atenta e afetuosa do adulto fortalece o vínculo e dá à criança a confiança necessária para explorar o mundo.
Hoje, muitas famílias escutam que quanto antes a criança dormir sozinha, comer sozinha e se desprender do colo, melhor será para sua independência. Mas autonomia não significa apressar processos ou negar o contato e o aconchego que a criança precisa. Pelo contrário, crianças que vivenciam vínculos seguros e se sentem acolhidas tendem a desenvolver uma autonomia mais sólida e confiante. O desafio está em encontrar o equilíbrio: estar presente sem sobrecarregar, incentivar sem pressionar, permitir a independência sem deixar de oferecer suporte. Quando a criança sente que pode explorar, mas também voltar para o colo quando precisar, ela cresce sabendo que a autonomia e a conexão andam juntas.
O teste da “bicicleta sem rodinhas”:
A autonomia não acontece de um dia para o outro – ela é um processo construído desde os primeiros dias de vida, passo a passo, dentro das possibilidades de cada fase do desenvolvimento.
Costumamos exemplificar essa “prova dos nove” no processo comum da infância de “tirar as rodinhas da bicicleta”. Antes de uma criança pedalar sem rodinhas, ela já passou por muitas outras etapas: engatinhar, andar, correr, equilibrar-se, cair e levantar. Cada pequena conquista ao longo do caminho prepara o terreno para o próximo desafio.
Por isso, o momento de soltar a bicicleta sem rodinhas representa muito mais do que apenas aprender a pedalar. Ele simboliza a confiança mútua entre criança e adulto, o amadurecimento motor e emocional, e a coragem de se arriscar sabendo que existe suporte caso algo dê errado. E justamente porque a autonomia é um processo, esse caminho costuma ser mais desafiador do que simplesmente segurar firme e não soltar nunca.
Permitir que a criança experimente, erre, ajuste seus movimentos e tente novamente exige paciência, presença e confiança. O mais fácil seria manter as rodinhas para sempre, evitar quedas, segurar forte e impedir que o inevitável aconteça. Mas o mais benéfico para o desenvolvimento é o contrário: oferecer segurança sem impedir o aprendizado, encorajar sem apressar, e estar ali para celebrar cada novo passo rumo à independência.
Autonomia não é sobre soltar de uma vez – é sobre preparar, confiar e, no momento certo, permitir que a criança descubra que pode seguir sozinha!
*Yolanda Basílio é psicóloga, psicomotricista e consultora parental. Atua com Educação Infantil há 15 anos e hoje está como CEO da POPPINS, um ecossistema todo dedicado aos cuidados da Primeira Infância.
*com edição de Marina Yazbek Dias Peres