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Infância violada: a urgência de combater a adultização e a sexualização precoce

Exploração infantil nas redes sociais: como a adultização precoce impacta o desenvolvimento emocional e social

Maria Carol Pinheiro* Publicado em 18/08/2025, às 06h00

Criança tem que brincar e a infância deve ser respeitada - pexels
Criança tem que brincar e a infância deve ser respeitada - pexels

Como psiquiatra e psicoterapeuta, testemunho diariamente em minha prática clínica as consequências de uma era marcada pela aceleração, hiperexposição e dissolução da intimidade. Esses fenômenos não surgiram do nada: integram uma transformação cultural mais ampla, na qual a lógica do mercado e dos algoritmos substitui o tempo orgânico do crescimento pelo ritmo veloz da performance e da visibilidade. Quando isso atinge adultos, já é crítico; para crianças e adolescentes, é devastador. Muito dessa realidade se traduz na adultização precoce. 

O tema ganhou destaque após o vídeo do youtuber Felca, que expôs, com precisão, situações em que crianças são exploradas em plataformas digitais. Meninos e meninas, muitas vezes com o consentimento e até incentivo de seus responsáveis, produzem conteúdos de conotação adulta, participam de desafios perigosos ou se tornam mini celebridades, vestindo roupas e assumindo poses que imitam o universo adulto. O objetivo, explícito ou velado, é gerar engajamento, lucro e validação social. 

Assista aqui ao vídeo do Felca

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A infância deveria ser um território protegido e de potência, descoberta e, sobretudo, brincadeira. É crucial lembrar que separar o universo infantil do mundo adulto foi uma conquista histórica, garantindo um período dedicado a prioridades essenciais: o lúdico, a curiosidade e a experimentação. Hoje, essa fronteira se esgarça. A cultura digital asfixia esse espaço ao transformar crianças em produtos e antecipar nelas angústias e demandas típicas da vida adulta. 

Como alertou Neil Postman no maravilhoso livro “O Desaparecimento da Infância”, quando as barreiras que filtram conteúdos adultos se desfazem, e crianças passam a consumir as mesmas informações sem mediação, a infância perde seu sentido como fase protegida. Na era da TV, isso já era preocupante; nas redes sociais, com acesso irrestrito e produção de conteúdo pelas próprias crianças, o processo é mais intenso e acelerado. 

O brincar livre, não mediado por expectativas externas, é fundamental para construir habilidades cognitivas, sociais e emocionais. A redução drástica desse tempo está associada ao aumento de transtornos como ansiedade, depressão e desregulação emocional. Ademais, a brincadeira autêntica vem sendo substituída por performances: vídeos, ensaios fotográficos e coreografias moldadas para agradar câmeras e algoritmos. O que agrava ainda mais os riscos à saúde mental.

Nosso olhar adulto deve ser filtro, não vitrine, nosso papel não é ser fãs das crianças, mas guardiões delas. A função de pais, mães e educadores é proteger e orientar, estabelecendo limites claros sobre o que é adequado à idade, não incentivar que crianças queimem etapas em nome da popularidade ou monetização. Limite não se opõe ao amor: é sua expressão mais concreta. 

A exposição precoce e massiva, especialmente quando sexualizada, não é apenas inadequada: é uma violência. Expõe crianças a predadores online, aumenta riscos de bullying e exploração, e pode deixar marcas profundas na autoestima e na construção identitária. A mercantilização do afeto e da imagem infantil, convertida em visualizações e patrocínios, forja subjetividades frágeis, ansiosas e dependentes de validação externa. 

Do ponto de vista neurobiológico, sobrecarregar um cérebro em desenvolvimento com pressões adultas equivale a instalar fios de alta tensão em um circuito elétrico em construção: aumenta o risco de falhas, sobrecargas e danos irreversíveis. 

Reconectar a infância ao direito ao tempo, à privacidade e às experiências reais é urgente. Precisamos devolver às crianças o direito ao mistério, ao erro, à descoberta e, principalmente, ao brincar sem roteiro. Isso exige ação coletiva: famílias críticas, escolas comprometidas com educação digital, plataformas responsabilizadas por algoritmos e políticas públicas que protejam a menoridade no ambiente online. 

Como disse Frederick Douglass, “é mais fácil construir crianças fortes do que reparar adultos quebrados”, proteger a infância hoje não é apenas um ato de amor individual, é um legado ético para a sociedade.

maria carol
A psiquiatra Maria Carol Pinheiro - divulgação

*Dra. Maria Carol Pinheiro - Psiquiatra, palestrante, professora universitária e Mestre em Ciências da Saúde, atua há mais de 15 anos com atendimentos em psiquiatria e psicoterapia. Coordena a disciplina “Saúde Mental na Escola” na pós-graduação em Neurociência Aplicada à Educação da Faculdade de Ciências Médicas da Santa Casa de São Paulo. Professora na pós-graduação do Einstein de Medicina do Estilo de Vida. É autora de capítulos de livros em editoras como Artmed, Manole e Cambridge, e tem se dedicado a palestras, treinamentos e consultorias em saúde mental pelo Brasil.