A violência contra professores expõe a perda de limites, o esvaziamento do diálogo e o rompimento da confiança entre famílias e escolas
Carol Campos* Publicado em 22/10/2025, às 06h00
Um pai agrediu fisicamente um professor em uma escola do Distrito Federal, refletindo a deterioração da confiança entre famílias e instituições educacionais e gerando um clima de insegurança nas escolas.
Estudos indicam que 45% dos professores brasileiros já enfrentaram agressões, e um em cada quatro considera deixar a profissão devido à violência e desrespeito, evidenciando um colapso emocional e institucional no sistema educacional.
A situação destaca a necessidade urgente de reconstruir o diálogo e a confiança entre pais e escolas, pois a violência contra educadores não é apenas um crime, mas um ataque à estrutura social e educacional do país.
Na última segunda-feira (20), um pai invadiu uma sala de aula no Distrito Federal e desferiu nove socos contra o professor de matemática da filha. Diante de uma turma paralisada, o que se vê não é apenas um ato de fúria, mas a imagem de um país que perdeu o limite.
As cenas são brutais, mas o que mais choca é o grito da filha, aos prantos, tentando conter o próprio genitor: “Pai, por que você está batendo no meu professor?”
Vale lembrar que a escola é o segundo espaço de vínculo social de crianças e adolescentes; o primeiro é a família. É justamente nela que nossos filhos aprendem a lidar com as diferenças e descobrem que o mundo é maior do que as quatro paredes da nossa casa.
É na convivência com tantas realidades distintas — famílias mais ricas ou mais pobres, mais estruturadas ou mais frágeis — que as crianças percebem que há múltiplas formas de viver e de amar. É, também na escola, que elas conhecem outros adultos que podem se tornar referência; gente capaz de ampliar seus horizontes e ensiná-las a enxergar o mundo por outras lentes.
A escola reforça o que aprendem em casa, questiona o que precisa ser revisto e ajuda a construir criticidade, algo tão importante em tempos de intolerância. Mas num mundo que já não tolera as diferenças, a violência contra educadores revela o colapso da confiança entre famílias e escolas.
O que o vídeo escancara vai muito além da agressão física. Trata-se de um homem que, tomado por descontrole e imaturidade emocional, obriga a própria filha a assumir o papel de adulta da situação. De súbito, a adolescente passa a ser a “voz da razão”, tentando conter a fúria do pai e salvar o professor.
Do ponto de vista do desenvolvimento humano, isso é devastador: uma jovem sendo forçada a agir com a maturidade que o adulto não teve. Esse pai não apenas violentou o professor, mas expôs sua filha diante dos colegas, da escola e de um país inteiro. Sua suposta “defesa” foi, na verdade, um ato de negligência afetiva. Ao negar o diálogo e ceder à violência, ele vulnerabiliza justamente quem dizia proteger.
Quando uma jovem, que deveria ser cuidada e protegida, recebe em troca uma exposição desta natureza, estamos obrigando que ela cresça antes do tempo. Estamos exigindo que ela performe uma maturidade que não se espera numa idade tão tenra. Estamos retirando dela o direito de ser jovem e de errar. Se tem alguém nessa história toda que tinha o direito de errar, esse alguém era ela.
É possível que você se questione sobre como um pai, nesse estado, conseguiu entrar, atravessar corredores e chegar a uma sala de aula sem ser contido? A resposta é incômoda, mas conhecida: a maioria das escolas brasileiras não tem protocolos de segurança, equipes preparadas para lidar com crises e muito menos estrutura de acolhimento. Em muitas redes, o único “sistema de defesa” é um vigilante sobrecarregado.
E a verdade é simples: não existe educação quando o medo divide o mesmo espaço da aprendizagem.
Há anos, o Brasil assiste à corrosão da autoridade docente e à desvalorização da palavra do professor. Em meio a discursos polarizados e a um ambiente social em constante ebulição, a escola passou a ser alvo e o professor virou o bode expiatório das tensões que a sociedade não sabe mais resolver.
Os números confirmam o que os educadores já sentem na pele. Segundo a Confederação Nacional dos Trabalhadores em Educação (CNTE), 45% dos professores brasileiros já sofreram algum tipo de agressão verbal ou física. Um levantamento da Associação Nova Escola (2023) mostra que um em cada quatro docentes já pensou em abandonar a profissão por causa do desrespeito e da violência.
Por trás dos dados, há histórias de afastamentos, crises de ansiedade e salas de aula vazias. A violência contra os professores não é apenas um crime, mas um sintoma do colapso emocional e institucional do país. Em situações dessa natureza, toda a comunidade escolar fica afetada por meses, ou até mesmo por anos.
O conflito no Distrito Federal começou quando o professor tentou aplicar a Lei nº 15.100/2025, que restringe o uso de celulares em sala de aula desde janeiro deste ano.
A norma, porém, prevê exceções — como o uso por razões médicas — e é possível que o caso envolvesse uma dessas situações. Mas o ponto central deste debate não é o celular: é a ruptura da confiança. Nenhuma lei, por mais bem-intencionada que seja, pode substituir o diálogo. Quando famílias e escolas deixam de conversar, qualquer regra vira faísca.
Mas como reconstruir uma sociedade tomada por tanto medo e violência? A reconstrução passa por algo mais simples do que contratar uma empresa de segurança armada ou investir em câmeras e circuitos de TV. Um estudo da Brookings Institution (2022) mostra que crianças cujos pais mantêm relação próxima e colaborativa com a escola aprendem até quatro vezes mais linguagem e dez vezes mais matemática do que aquelas cujas famílias se mantêm distantes. A diferença não é econômica nem tecnológica: é relacional. Pais que confiam na escola, participam. Professores que confiam nas famílias, acolhem. A confiança é o verdadeiro alicerce da aprendizagem.
O caso do Distrito Federal não é um episódio isolado; é um espelho do que nos tornamos. Enquanto o debate público gira em torno de quem “tinha razão”, deixamos de enxergar o essencial: a violência contra o professor é um ataque à ideia de sociedade.
Precisamos refazer o pacto que sustenta a escola: o pacto entre famílias, educadores e a comunidade. Respeito, diálogo e confiança não são só palavras. São condições de existência para qualquer país que ainda pretenda se chamar civilizado.
Quando um pai invade uma escola, não é só o portão que se abre. É a fronteira simbólica entre o respeito e a barbárie que se rompe.
Quando um professor é agredido, não é só ele que sangra. É um país inteiro que sofre junto.
*Carol Campos (@carolcampos.educa) é educadora especializada em emergências, advogada e mestre em Políticas Públicas. Atuou em instituições como MIT e Teachers College (Columbia), estudou na Harvard Extension School, e liderou projetos em Sobral e em redes municipais de ensino. Atualmente, é Diretora Executiva do Vozes da Educação, Conselheira do Movimento pela Base e Consultora da UNESCO junto ao MEC e ao Banco Mundial.
Quer incentivar este jornalismo sério e independente? Você pode patrocinar uma coluna ou o site como um todo. Entre em contato com o site clicando aqui.