Um relato forte e necessário do jornalista Paulo Amaral, sobre a violência sofrida por seu filho Antônio, de 17 anos. Antônio tem autismo
Paulo Amaral* Publicado em 02/10/2025, às 11h41

Isso a TV não mostrou!
O Fantástico exibiu uma série emocionante sobre o autismo recentemente, mas a realidade do autista passa longe do glamour da TV. Bullying, ameaças e violência fazem parte da rotina na vida do Antônio que chega aos 17 tentando encontrar seu lugar no mundo. Essa é a história dele, que neste dia 1 de outubro fez aniversário carregando no rosto as marcas que essa sociedade doente reservou para quem não se encaixa nos padrões que ela determinou.
Ele tinha 4 anos quando lembrou de um jogo do Flamengo contra o Coritiba um ano antes. Sabia quanto foi, quem fez os gols, os minutos dos gols e a escalação dos dois times. Tomei um susto e fiquei aliviado. Ele só tinha começado a falar aos 2 anos e meu medo era que isso atrasasse seu aprendizado. Ele teve enormes dificuldades para escrever, não tinha o traço fino da escrita e, até hoje, só usa letra de forma. Um simples laço no cadarço é para ele um grande desafio.
Ler não foi o problema. Logo aprendeu todas as regras do futebol. Ele era tão rígido quanto as regras do jogo que qualquer pelada virava jogo sério com impedimento e cartões. Mesmo com todo acesso à informação, olhava aquele comportamento como manifestação do caráter. Mas as outras crianças não viam assim. O telefone tocava toda vez que ele chorava na secretaria da escola depois de discutir com os amigos que queriam apenas brincar sem regras. Fazer amigos era fácil pra quem tinha habilidade no futebol, mantê-los era um desafio. A rigidez do pensamento é uma característica do autismo e ele não entende metáforas. Se é para "quebrar um galho" ele procura uma árvore. Na escola, no futebol, no condomínio não conseguia encontrar o melhor amigo que tanto queria.
Antônio entrou na pandemia quando ainda tentava se achar no mundo. Buscou refúgio no conhecimento, logo já sabia os times de futebol das principais ligas, os artigos da constituição e aprendeu o ECA (Estatuto da Criança e do adolescente) para se proteger. Discorria sobre Marx e Adam Smith e discutia com quem insistia em dizer que Hitler era socialista ou que o positivismo era o melhor modelo para o mundo. Tanta informação fez com que ele se posicionasse. Aprendeu que história era causa e efeito e desenvolveu uma habilidade incrível de oratória. Ao fim da pandemia, se destacava em debates na escola pelo repertório, conquistou os professores de história e geografia pela capacidade de resumir os símbolos e características de cada um dos países, reconhecidos ou não.
Mas tanto conhecimento não fica impune na adolescência e ele passou a conviver com a crueldade do bullying. A violência dos outros o assustou tanto que o levou ao isolamento social. "Pai, por que ninguém me chama para as festas?". Tentou se "enturmar no futebol", chegou à base do Boavista, mas depois de 4 jogos do campeonato carioca passou a ser discriminado pelo técnico e pelos amigos, dessa vez por conta das suas fortes convicções políticas contrárias àquele grupo. Foi barrado e abandonou o futebol. Na escola, brigou com o garoto popular porque não se calou quando testemunhou ataques misóginos e racistas.
Eu tentava ajudar como podia diante da falta de preparo das escolas para lidar com o autismo, a ineficiência do Estado e a falta de empatia da sociedade. Se já éramos o país dos técnicos de futebol, agora somos o país dos psicólogos. Quase todos têm uma opinião sobre transtornos mentais e muitos tentam normalizar, falam de mimimi, ou usam a frase mais comum "na minha época a gente resolvia isso de outro jeito".
Antônio se empoderou para resolver a sua dor por conta própria. Quando me pediu autorização para fazer uma "resenha" em casa eu autorizei de imediato, não sabia que "resenha" não era mais só uma reunião de amigos para falar de futebol e sim como são chamadas as festas de menores regadas com álcool. Eram quase 60 jovens dentro da minha casa e pelo menos 18 garrafas de vodka que recolhi assim que descobri. Antônio não pode beber por causa dos medicamentos e até gostou de ter um argumento para dar aos amigos. Ele estava feliz como há muito não via. Mesmo sem álcool, a festa tinha sido um sucesso e ele passou a fazer parte do grupo de WhatsApp das baladas adolescentes.
Começou a fazer sucesso com as meninas e outros meninos pediam ajuda para ele desenrolar namoros. Se entusiasmou e me pediu para organizar outra festa. Autorizei, mas proibi o álcool, e a ideia não foi pra frente. Há cerca de um mês, me disse que amigos da escola e do condomínio estavam organizando uma festa para comemorar o aniversário de um deles e que foi convidado para ajudar na organização e até iria receber uma grana por isso. Na sexta-feira, 22 de agosto, deixei ele na festa dentro do nosso condomínio e fui ao aeroporto. Quando voltei, encontrei um protesto de 300 jovens na porta e o Antônio sozinho tentando dialogar.
Ele e os amigos tinham alugado uma casa por R$ 6 mil reais, venderam 350 ingressos a uma média de R$ 60,00, mas a dona da casa decidiu acabar com a festa assim que começou. Na hora, ordenei que devolvesse a cada um que estava ali o dinheiro do ingresso. Pedi à dona da casa que devolvesse o dinheiro do aluguel, já que ela mandou acabar com a festa. Não consegui e ainda desembolsei quase R$ 3 mil. A manifestação se dissipou, mas era só o início da tempestade.
No dia seguinte, procurei os pais dos outros organizadores que, estranhamente, tinham deixado o Antônio sozinho tentando controlar a multidão. Não consegui. Os "amigos" da organização abandonaram o Antônio e, pior, passaram a apontá-lo como único responsável financeiro. As ameaças escalavam, já não dava pra saber quem estava ou não na festa. Antônio passou a conviver com xingamentos diários e o linchamento moral das Redes Sociais. As palavras autista, doido e maluco passaram a circular nos grupos de WhatsApp dos quais ele foi excluído. E o mais grave: as mensagens passaram a estimular o linchamento físico.
Antônio teve crises, entrou em pânico, chorava pelo "suicídio social" ao mesmo tempo que tentava arrumar o dinheiro para devolver às pessoas. A rigidez de pensamento dele fazia com que a devolução fosse um compromisso moral. Eu continuava tentando contato com os pais dos outros meninos sem sucesso. O pior é que esses próprios meninos passaram a estimular a violência. As ameaças estavam cada vez maiores e mais agressivas - quando decidi prestar queixa na delegacia da infância e da juventude.
Foi a primeira vez que o Antônio revelou o nome dos organizadores da tal "resenha". Também procurei o conselho tutelar. Minha crença era que os pais percebessem a gravidade da situação e fizessem as ameaças cessar. Estamos falando de R$ 60,00 num ambiente social em que os jovens desfilam seus símbolos de riqueza e poder nas ruas. Mas o Estado falhou.
O que se desenhava aconteceu. Na última sexta-feira, Antônio foi cercado numa festa e espancado por um grupo de jovens. Enquanto era socorrido no hospital, eu ia para a delegacia. Só o pai de um dos agressores se dispôs a ir comigo. O filho dele estudava com o Antônio quando, aos 7 anos, foi vítima de bullying (também por ser neurodivergente) e, na época, o único que ficou do lado dele foi o Antônio. O mundo dá voltas meio estranhas. E, dessa vez, era o Antônio quem estava sozinho e só contando com os pais para lhe dar a mão.
Conto essa história hoje porque o Antônio não quis comemorar o aniversário. Não quer fotos. Não vai ter festa, não vai ter amigos celebrando. No lugar do sorriso, uma boca com o sangue daqueles que viram as costas para uma juventude perdida, as maiores vítimas de uma pandemia que deixou sequelas profundas na sociedade. Há quem vá dizer que sempre foi comum beber na adolescência, mas 18 garrafas de vodka? Os pais que se esconderam na solução do problema do Antônio, são os mesmos que vão discutir com a escola que suspendeu o filho por mau comportamento ou por uma questão "ideológica" numa prova. São os pais que ignoram o que os filhos estão fazendo e passam pano para os atos de misoginia, racismo, homofobia e violência contra as pessoas "diferentes ". Sim, Antônio tem uma condição especial, mas isso não diminui sua capacidade. Quem dera essa sociedade tivesse mais Antônios.
Como eu queria que ele se levantasse da cama e fosse comemorar o seu caráter e a sua bondade. Filho, você não está errado e os seus pais tem orgulho de você. Vou lutar ao seu lado com as armas que a gente tem para tentar mudar o mundo. Sei que ele não está sozinho e há quem se sensibilize com essa dor. Se você quiser compartilhar essa história será a melhor defesa do que ele acredita. Filho, a minha fé nas pessoas e a esperança que tenho em viver num mundo melhor é o presente que posso te dar hoje. Torcendo para que você também não desista dessa luta. Feliz aniversário, meu amor. Eu te amo!
*Paulo Amaral é jornalista, pai do Antonio e da Gabi