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A série “Adolescência”: um convite à escuta

A série "Adolescência", da Netflix, revela os perigos das redes sociais e a necessidade de um debate sobre o bem-estar dos jovens

Diana Silva*, Gabriel Maia Salgado* Publicado em 04/06/2025, às 06h00

Existe um grande abismo entre gerações que complica a comunicação e entendimento emocional em famílias - pexels
Existe um grande abismo entre gerações que complica a comunicação e entendimento emocional em famílias - pexels

No último mês, muito se debateu sobre os impactos negativos das redes sociais na vida dos adolescentes, assunto especialmente trazido à tona por "Adolescência", da Netflix. Ao retratar adolescentes imersos em ambientes digitais tóxicos, a série escancara questões de violência, bullying e misoginia generalizada – amplificadas e impulsionadas pelas próprias plataformas digitais, cuja lógica de funcionamento lucra com a disseminação de discursos de ódio e movimentos extremistas. Esses problemas representam um alerta crucial que precisa ser amplamente debatido e enfrentado coletivamente.

No entanto, neste artigo, propomos deslocar o olhar que costuma enxergar a adolescência como uma fase problemática — frequentemente associada a conflitos, rebeldia ou crises — e convidamos a reconhecê-la como uma etapa rica em potência criativa e transformadora, capaz de contribuir para a construção de uma sociedade boa para todo mundo, mais justa e que acolhe e valoriza as diferenças. Essa fase singular da vida é marcada por múltiplas linguagens, expressões culturais próprias e uma capacidade inovadora que demanda, com urgência, reconhecimento, condições adequadas e espaços de qualidade para se concretizar plenamente.

O grande desafio é que nós, adultos, ainda não sabemos escutar e compreender adequadamente essa fase da vida. Na série, torna-se evidente que os principais sistemas responsáveis por proteger, educar e cuidar da adolescência — a família, a escola, a sociedade e as plataformas digitais — falharam. Se é preciso uma aldeia inteira para criar uma criança, quando essa aldeia se ausenta, produz adoecimento e destruição.

Na trama, Adam, o filho do detetive Bascombe, ressalta nitidamente esse ponto: há um abismo profundo entre gerações. Ele mostra que seu pai está buscando respostas para a motivação do crime de Jamie, o protagonista da série, nos lugares errados, justamente por desconhecer os códigos, as linguagens e as formas de interação que compõem o universo adolescente. Ao mesmo tempo em que essa cena revela o quanto o policial ignora essas culturas, também expõe algo essencial: a urgência do afeto na relação entre pai e filho. Sensibilizado pela situação dramática de outro menino, o detetive tenta se aproximar emocionalmente do próprio filho. O afeto, o interesse profundo pela vida do outro, o diálogo e a escuta atenta são caminhos fundamentais para o desenvolvimento humano e para atravessar esse abismo geracional e suas complexidades.

No Brasil, cinco em cada 10 meninos duvidam do amor paterno, mostra uma pesquisa do Instituto Papo de Homem, com apoio do Pacto Global da ONU no Brasil, reforçando um cenário de desconexão familiar com referências de masculinidade e parentalidade positivas, e uma cultura que fomenta um sentimento de rejeição e que reprime demonstrações de afeto legítimo e genuíno entre homens.

A série também nos convida a refletir sobre o quanto a ausência de cuidado, escuta e reconhecimento pode moldar a trajetória de adolescentes. No encontro final com Briony, a psicóloga, Jamie a questiona: "Você gosta de mim?". Essa pergunta, perturbadora em sua simplicidade, revela uma carência profunda de vínculos afetivos básicos, acolhimento e sentimento de pertencimento. A ciência já demonstrou amplamente que o desenvolvimento humano não depende apenas de cuidados físicos, mas está profundamente enraizado na qualidade dos vínculos afetivos e das relações que se constroem desde a infância — relações que oferecem segurança para explorar, criar, se expressar, errar e amadurecer. O cuidado com as emoções e com os laços comunitários, para além da família, é decisivo para o desenvolvimento físico, intelectual, emocional e social de crianças e adolescentes. Sentir-se visto, reconhecido e pertencente a uma comunidade é tão vital quanto a nutrição e o ar que se respira.

A adolescência, conforme aponta um relatório de 2017 do UNICEF, é considerada a segunda grande janela de oportunidade do desenvolvimento humano, depois da primeira infância. As experiências vividas nessa fase têm impacto duradouro na sua formação pessoal e social. Por isso, reconhecer o cuidado e o vínculo como direitos fundamentais significa garantir que adolescentes tenham o direito de existir em sua pluralidade e plenitude.

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Para além da família, a escola, por sua vez, desempenha um papel essencial na garantia desse direito, afinal, é nesse ambiente que os adolescentes passam boa parte do dia. Uma educação de qualidade, conforme estabelece a legislação brasileira, inclui proteção, construção de conhecimentos e convivência comunitária. E é nos anos finais do ensino fundamental — possivelmente os que correspondem à faixa etária dos personagens da série — que se concentram os maiores índices de abandono, repetência e desengajamento escolar. Segundo dados públicos analisados pelo UNICEF em 2024, cerca de um terço dos estudantes não concluiu os anos finais do ensino fundamental no tempo esperado, escancarando um cenário preocupante de desconexão entre o que é ofertado e o que os adolescentes realmente necessitam. Há uma carência expressiva de estruturas básicas para a aprendizagem, convívio, atividades físicas e desenvolvimento integral como quadras esportivas, bibliotecas, laboratórios de ciências, pátios e áreas verdes, segundo o Censo Escolar 2023.

Apesar desse cenário de desafios, há esforços em curso para mudar essa realidade. Em 2024, foram realizadas escutas participativas com crianças, adolescentes e suas famílias — com colaboração do Instituto Alana — para subsidiar a elaboração do “Guia para Uso Consciente de Telas e Dispositivos Digitais por Crianças e Adolescentes”, que orienta uma relação mais saudável e criativa com o ambiente digital. Também como referência, uma iniciativa do governo federal, a Semana da Escuta das Adolescências nas Escolas, busca compreender as necessidades e perspectivas dos estudantes dos anos finais do ensino fundamental.

É urgente construir uma educação integral cada vez mais contextualizada com os interesses e necessidade dos adolescentes, que ofereça tempos e espaços adequados para a prática de esportes, artes e ciências, assim como oportunidades de estar ao ar livre, convivendo, brincando, aprendendo e se desenvolvendo com e na natureza. E que a participação de crianças e adolescentes seja parte viva do cotidiano escolar, favorecendo o aprendizado significativo e o vínculo com sua comunidade. Só assim teremos escolas capazes de cultivar laços sociais, o senso crítico, a autonomia e uma ética do cuidado consigo, com os outros e com o planeta.

Ao serem estimulados a criar, investigar e agir sobre os problemas que os afetam, os adolescentes manifestam uma enorme capacidade de invenção e compromisso com o bem comum. Foi o que fizeram, por exemplo, as estudantes da Escola Municipal Campo Bom (RS), que desenvolveram o aplicativo “Tigre Branco” — uma resposta direta e sensível ao jogo “Baleia Azul”, que incentivava o suicídio entre adolescentes —, propondo desafios voltados ao cuidado com a saúde mental e à autoestima. Ou as alunas da Escola Estadual de Ensino Fundamental e Médio Jacaraípe, em Serra (ES), que criaram o aplicativo “Primeiros Passos”, incentivando o estudo e a diversão de forma acessível e engajada. Se posicionando contra o adultocentrismo, estudantes de Itabira (MG) também se mobilizaram por meio do projeto “Fora da Bolha” para combater o racismo, promover o debate sobre temas como violência doméstica, abuso e machismo, e valorizar a cultura afro-brasileira, por meio de rodas de conversa, livros digitais e produções audiovisuais.

Iniciativas como essas, mobilizadas pelo movimento global Design for Change, representado no Brasil pelo Criativos da Escola, do Instituto Alana, evidenciam a força e a potência dos adolescentes na transformação da realidade, quando a educação tem significado e participação. Algo que se tornou ainda mais evidente com o recente Prêmio Criativos Escola + Natureza, que mapeou mais de 1.500 projetos de estudantes que atuam em prol da natureza. Esse engajamento é especialmente urgente em um cenário em que cerca de 40 milhões de crianças e adolescentes brasileiros — 60% do total — estão expostos a mais de um risco climático ou ambiental, segundo dados de 2022 do UNICEF.

Fortalecer esse movimento — que convoca todos nós a garantir melhores condições e oportunidades concretas para que os adolescentes, mesmo diante das ameaças ao presente e ao futuro, tenham o direito de sonhar, imaginar e construir um mundo melhor — é imperativo.

*Diana Silva é psicóloga formada pela PUC-SP, psicanalista pelo Instituto Brasileiro de Psicanálise Winnicottiana (IBPW) e especialista em educação pela UNESP, com experiência profissional na área social, educacional e clínica. No Instituto Alana, é assessora pedagógica e pesquisadora, com foco em cultura digital, bem-estar, natureza, educação e desenvolvimento de crianças e adolescentes.

*Gabriel Maia Salgado é gerente da área de Educação e Culturas Infanto-Juvenis do Instituto Alana

*Com edição de Marina Yazbek Dias Peres