Minha experiência pessoal sobre as diferentes visões de paternidade e adoção em conversas com amigos - e não amar nunca passou pela minha cabeça
Antoune Nakkhle Publicado em 17/12/2025, às 06h00

Durante uma conversa casual no cinema, um amigo fez comentários insensíveis sobre a adoção, questionando a capacidade de amar um filho adotivo em comparação a um biológico, o que gerou desconforto e reflexão no interlocutor.
O protagonista relembra a dor de ter passado por abortos espontâneos e como as palavras do amigo reavivaram esse sofrimento, evidenciando a falta de empatia e compreensão sobre a experiência da adoção.
Com o tempo, o protagonista encontrou clareza em seu desejo de ser pai, valorizando os momentos cotidianos com sua filha e aprendendo a estabelecer limites em conversas sobre adoção e preconceito, reafirmando que o amor por sua filha é uma experiência única e pessoal.
Outro dia me lembrei de um fato que aconteceu comigo. À época não me dei conta do quão absurda foi a situação; com o tempo caí na real. Estávamos a caminho do cinema.
Mais tarde, pipoca na mão, meu “amigo”, arremessou essa:
— Seu bebê tá quase chegando, né? E aí, tá nervoso?
— Ah, se eu disser que não, estarei mentindo para você. Uma ansiedade, uma vontade de pegar meu nenezinho no colo que você nem imagina. É muito louco, apesar da minha mulher não estar fisicamente grávida, eu sinto que ela tá grávida, que nós estamos grávidos. Ela também sente isso. Outro dia até sonhou com nosso bebê.
— Imagino, pois é diferente, não tem barriga, não tem parto, chá de bebê, essa correria para o hospital quando estoura a bolsa...
— Pois é...
— Isso que todo casal passa tem quando é filho mesmo, né?
Ai.
— Nosso filho é nosso mesmo, não muda nada.
— E você não tem medo de não gostar?
— De não gostar do que, de ser pai?
— Não, eu estou falando de não gostar da criança, de não amar o bebê, você me entende?
A esposa não se aguentou:
— Amor, o que é isso?
— O que é que tem, amor, tô perguntando para ele porque somos amigos e eu tenho essa liberdade! É para o bem dele e da Cláudia.
— Desculpe, Antoune, minha mulher não entendeu o que eu quis dizer.
—Tá bem, Fred, mas continua, me fala mais? Como assim não amar o bebê?
Fiquei curioso, quis saber onde ele pretendia chegar.
— Ah, é que quando vem um bebê da barriga da sua mulher, você sabe de onde veio, que não será mau elemento, sabe a origem dos pais. E sabe também que ele vai se parecer com você ou com sua esposa, com a vovó. Às vezes até já nasce parecido. E tem os nove meses para ir conhecendo o bichinho cada vez que a gente vai fazer ultrassom todos os meses. É uma delícia, não dá para explicar! Ainda mais quando ele se mexe na barriga. Entendeu agora?
Imediatamente pensei: O que eu digo agora para esse imbecil? Isso é amigo?
Nessas horas vinha tudo junto à cabeça. Embora minha esposa e eu, quando nos casamos, quiséssemos ter filhos nos dois formatos – biológico e por adoção —, foi muito dolorido passar pelos abortos espontâneos. Para a mulher, então, nem se fale, pois acontece no corpo dela – sem falar nas cobranças sociais. Esse meu amigo sabia que tínhamos perdido bebê, passado por curetagem e por todas as dores que acompanham um aborto. Mas resolveu não se atentar a isso, não pensar que a fala dele pudesse reavivar o sofrimento pelo qual passamos e me machucar. A impressão que deu era de que ele pensou que, só porque iríamos adotar, tínhamos apagado o momento doloroso que vivemos quando perdemos nosso filho. Eu achei essa atitude dele de um egoísmo atroz, para dizer o mínimo. Sem falar na falta de sensibilidade dele comigo. Eu não havia perguntado nada. E não foi falta de aviso, a esposa dele sabiamente tentou interromper sua fala. Sem efeito. Ele não estava nem aí.
A gente nunca está pronto para tudo o que a vida nos apresenta.
Não respondi nada.
— Mas você entendeu o que eu quis dizer, né? — ele insistiu.
— Eu não concordo com nada do que você me disse.
— Benhê, vamos entrar, o filme tá quase começando!
— Ih, Antoune, já vi que você não está num bom dia, deixa para lá. Só falei que quando o filho se parece com a gente, nós amamos mais a criança, isso é óbvio. Porque eu vou te falar: tem um lado muito chato em ter filho. Criança é um bicho chato. Só amando muito mesmo para aguentar.
Impossível classificar essa fala. Acredite: eu ouvi isso.
Quando o filme terminou cada um foi para o seu lado. Entrei numa livraria. Precisava de um respiro. Precisava de outras histórias, não importava quais.
Esse tipo de pensamento pode abalar muito a pessoa que pretende adotar. Eu fiquei mexido demais. Embora ridículas as afirmações deste amigo, eu parei para pensar. Cheguei até a considerar que ele pudesse estar certo quando dizia que quanto mais o filho se parecesse com a gente, maior seria o amor pela criança.
Foi muito difícil, você não pode imaginar. É o tipo de coisa que eu não tinha com quem conversar. Nem com a terapeuta.
E se isso fosse verdade? E se eu nunca pudesse amar um filho do jeito que os pais biológicos amam? Será que amam mesmo como dizem? Pensei em checar com outras pessoas que tinham filhos. Mas tive vergonha de perguntar.
É desalentador perceber que todos sempre colocam defeito na adoção ou têm dó de quem adota.
Nesse caminho, a única certeza que eu tinha é que eu queria ser pai, com toda a responsabilidade que isso trazia. Diante de tanta bobagem que eu sempre ouvia, às vezes perdia essa clareza.
Até que a clareza, aos poucos, voltou para ficar. A cada manhã ao acordar. A cada manhã ao ver minha filha acordando. Ao arrumá-la para ir à escola. Almoçando com minha filha. Pegando-a no colo quando a levava para tomar vacina. Ajudando-a a entender a lição de casa. São situações cotidianas como estas que nos trazem a certeza de que amamos nossos filhos. O resto não importa.
Com o tempo, percebi que eu não precisava ter todos os amigos do mundo. Fui muitas outras vezes ao cinema sozinho e quando minha filha cresceu um pouco, passamos a ir juntos assistir outros tantos filmes. Conheci outras pessoas com quem fiz amizade - algumas até hoje estão lado a lado comigo.
Agora entendo que nem todos precisam pensar como eu. Posso mudar de assunto quando o papo for por um caminho estranho. Quando o tema for adoção, preconceito e racismo. Aprendi a dar limites para os outros e para mim.
Sempre que possível, ainda hoje, minha filha e eu vamos juntos ao cinema com a pipoca na mão.
O amor pela minha filha é assunto meu.
*Antoune Nakkhle é jornalista, assessor de comunicação e imagem e pai da Gabriela.
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