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Epidemia de solidão

Conheça o Conexão Sapiens, podcast do médico Kald Abdallah, que desta vez em sua coluna nos traz uma reflexão sobre a solidão e saúde

Kald Abdallah* Publicado em 17/10/2024, às 06h00

O médico Kald Abdallah, brasileiro que mora nos EUA
O médico Kald Abdallah, brasileiro que mora nos EUA

O isolamento social mata de diversas formas diferentes. Após 24 anos de pesquisa em oncologia, lembro-me bem da frustração de ver um paciente com câncer gradualmente caminhar para a morte, a dor e a fadiga presentes e progressivas. É sempre muito doloroso acompanhar estes pacientes. Há uma certa similaridade na forma como o isolamento social mata as pessoas. Os dados demonstram que a mortalidade do isolamento social é aumentada por inúmeras causas diferentes, além de um alto índice de alcoolismo, dependência de drogas, depressão, suicídio, acidentes, violência, entre outras formas de sofrimento humano. A jornada até a morte de uma pessoa sofrendo de um intenso isolamento social não é fácil e ilustra bem as formas mais profundas de desespero humano.

Devido à forma com que a ciência separa as diversas áreas, tais como socialidade, psicologia e medicina, há uma ilusão de que existe uma separação entre o social e o biológico. Esta separação é artificial e existe somente na imaginação humana. Fenômenos psicológicos e sociais tem efeitos biológicos e vice-versa. Na coluna de hoje descreverei algumas das consequências biológicas de um isolamento social, ou seja, responderei a pergunta “qual é o impacto no seu corpo causado pela solidão?”

Mas antes de falar sobre a consequência biológica da solidão, gostaria de enfatizar que é perfeitamente possível sofrer de solidão mesmo com contato social frequente tanto na vida pessoal quanto na vida profissional. Uma socialidade saudável não se correlaciona com o número de seguidores no Facebook ou no Instagram, mas sim com a qualidade e a intimidade cultivada com um grupo de mais ou menos 15 pessoas que formam o núcleo central da rede social individual que cada pessoa tem. A qualidade da sua conexão com este grupo relativamente pequeno de pessoas determina o risco de isolamento social. A falta de relacionamentos de qualidade irá causar uma profunda sensação de desconexão e isolamento, com a percepção interna de que não se pertence (belonging).

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Portanto, a definição de isolamento social que tenho em mente é uma pessoa que não tem uma conexão social de qualidade (intimidade, amor, afeto, vulnerabilidade e segurança psicológica) com cerca de 15 pessoas. Alguém pode conhecer centenas de pessoas e ainda assim estar isolada socialmente.

A espécie humana é ultrasocial e sempre trabalhou em time para a sobrevivência. Do ponto de vista evolutivo, o isolamento social significa um alto risco de vida. Estar sozinho eventualmente é natural, porém a percepção do isolamento contínuo e prolongado ativa inúmeros sinais de alerta dentro do nosso corpo. Um indivíduo da espécie humana não foi desenhado para sobreviver sozinho. O isolamento social pode ter efeitos profundos em nossa saúde física e mental. Esses efeitos são frequentemente mediados por vias bioquímicas no corpo.

Aqui estão algumas áreas-chave onde o isolamento social pode ter um impacto bioquímico:

Sistema de resposta ao estresse

Estresse crônico, frequentemente associado ao isolamento social, pode levar a níveis elevados de cortisol. Altos níveis de cortisol podem ter efeitos prejudiciais em várias funções corporais, incluindo:

  • Aumento da pressão arterial
  • Promoção do ganho de peso
  • Interrupção dos padrões de sono
  • Contribuição para transtornos de humor
  • Neurotransmissores

O isolamento social pode levar à diminuição dos níveis de serotonina e dopamina, neurotransmissores associados à regulação do humor, prazer e recompensa. Baixos níveis desses neurotransmissores podem contribuir para depressão, ansiedade e diminuição da motivação.

Sistema imunológico

O isolamento social pode prejudicar a capacidade do sistema imunológico de combater infecções e doenças. Isso provavelmente se deve aos efeitos combinados do estresse, diminuição da atividade física e mudanças nos padrões de sono.

Saúde cardiovascular

O isolamento social tem sido associado a um maior risco de doença cardiovascular. Isso pode ser devido a fatores como aumento do estresse, dieta inadequada e diminuição da atividade física.

Função cognitiva

O isolamento social pode impactar negativamente a função cognitiva, incluindo memória, atenção e habilidades de resolução de problemas. Isso pode estar relacionado ao aumento do estresse, de privação do sono e à redução de oportunidades de estimulação mental.

Cada vez mais, os países desenvolvidos reconhecem que o isolamento social está crescendo e se tornando um grande problema de saúde pública, porém na grande maioria das vezes, a abordagem do tratamento é míope, monolítica e dependente da farmacoterapia. Para enfrentar este problema, o Reino Unido criou um Ministério para a solidão.

Nos Estados Unidos, a pesquisadora Julianne Holt-Lunstad ligou o alarme da crescente crise causada pelo isolamento social. No Brasil, nosso sistema de saúde precisa aprender a cuidar das pessoas de uma forma que a visão de bem-estar seja inclusiva e busque a saúde biopsicossocial. Diversas intervenções diferentes estão sendo estudadas para o tratamento do isolamento social, incluindo atividades comunitárias, trabalhos voluntários, animais domésticos, entre outras. O sistema de saúde deveria ampliar o papel da assistente social, que talvez seja uma das ações mais impactantes na qualidade de vida e na felicidade da sociedade de hoje.

Outro ponto importante é a desconexão entre os diferentes profissionais, devido à falta de treinamento e consciência sobre este problema. O tratamento do isolamento social não acontece de forma integrada e coordenada entre os diversos profissionais dentro do sistema de saúde. O isolamento social requer hoje uma abordagem multidisciplinar.

Porém ,falta o treinamento profissional e não há políticas de tratamento baseadas em evidência que integrem as intervenções multidisciplinares. Hoje, psicólogas, médicas e assistentes sociais trabalham em paralelo, raramente conversam ou coordenam intervenções e quase nunca se reúnem para discutir um caso clínico. É necessária a integração e colaboração entre profissionais diferentes. Há um desconhecimento de todo espectro de intervenções possíveis, deixando o paciente basicamente dependente de remédios. O uso crônico de antidepressivos, medicamentos para perder peso, para dormir, controlar a hipertensão, entre muitas outras intervenções medicamentosas, são ações que arranham a superfície, porém fracassam na resolução do problema de base.

Podcast Conexão Sapiens – A ciência desvendando você! No episódio 16 discuti em mais profundidade este assunto

Meu nome é Kald Abdallah, sou paranaense, cresci numa cidade pequena no norte do Paraná chamada Borrazópolis. Eu sou médico formado pela Universidade Estadual de Londrina (minha querida UEL). Fiz residência e doutorado na Faculdade de Medicina da Universidade de São Paulo, pós-doutorado pela Faculdade de Medicina da Universidade de Harvard, em Boston nos EUA.

Já trabalhei na prática clínica, como professor de medicina, executivo e pesquisador. Há 23 anos me dedico a luta contra o câncer, nos últimos 17 anos morando e trabalhando aqui nos EUA. Recentemente, comecei um projeto que tem sido uma verdadeira paixão para mim: o Conexão Sapiens – A ciência desvendando você! É um podcast que busca ir além das estórias passageiras, oferecendo uma exploração profunda e duradoura com o objetivo de sintetizar a ciência no apoio a sua jornada de crescimento social, pessoal e cognitivo. Esta síntese é o resultado de mais de 2 décadas de estudo.

Convido você a participar dessa jornada de crescimento social, pessoal e cognitivo comigo!

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