A cada episódio do podcast Conexão Sapiens, do médico Kald Abdallah, que mora nos Estados Unidos, uma lição de vida, uma verdadeira aula
Kald Abdallah* Publicado em 09/07/2024, às 06h00
Há uns anos eu decidi estudar sistemas complexos e tive uma crise de autoconfiança. Fiquei muito assustado, pois percebi que grande parte do meu próprio conhecimento eram estórias que eu contava para mim mesmo e não capturava profundamente a realidade. Subitamente, descobri que era muito mais ignorante que eu imaginava. Este é um fenômeno psicológico descrito pelos cientistas Justin Kruger e David Dunning, dois psicólogos americanos que fizeram pesquisa sobre a correlação entre confiança e quantidade de conhecimento a respeito de uma disciplina.
A pessoa que realmente sabe um assunto, sabe também o tamanho da própria ignorância. Atingir um nível de conhecimento profundo dentro de uma área não necessariamente aumenta a confiança, pois requer uma humildade cognitiva para reconhecer o que não sabe. Isto se chama sensibilidade metacognitiva, um nome complicado que basicamente quer dizer que a especialista percebe bem o nível do próprio conhecimento, ou seja, tem consciência quando ela sabe e está certa e quando não sabe, complicado não? Eu demorei bastante para entender isso.
Durante o processo de aprendizado em uma área do conhecimento, o nível de confiança sobre o próprio conhecimento cai com o tempo até a pessoa realmente se tornar um especialista que tem um conhecimento profundo com um alto nível de sensibilidade metacognitiva, ou seja, um especialista que sabe quando sabe e sabe quando não sabe.
Nossa cognição foi desenhada para entender o mundo através de estórias, principalmente as que despertam emoções como medo, raiva, revolta etc. Durante a evolução humana, quando convivíamos com um grupo pequeno de 50 a 150 indivíduos, ouvir e acreditar nas estórias um dos outros era fundamental para a nossa sobrevivência, pois caso você não prestasse atenção na estória do caçador a respeito da presença de uma matilha de lobos na região, você poderia virar a janta deles. Porém, as estórias de hoje em dia têm um objetivo diferente.
Considerando que eu sou médico e cientista, sempre recebo perguntas sobre estórias contadas nas mídias sociais. Essas estórias envolviam desde efeitos colaterais de vacinas até certos alimentos prevenindo o Alzheimer. No começo, decidi investigar cada uma delas e checar as referências. Acredito que eu tenha revisado dezenas de estórias, sendo que nunca nenhuma delas teve fundamento científico: 100% de todas as estórias que verifiquei eram balela. Estas narrativas contém uma dose grande de exagero, drama, conspiração, vítimas, vilões, entre outros ingredientes. São estórias construídas para aumentar o tráfego nas mídias sociais, basicamente poluição cognitiva. Aprender a pensar criticamente e filtrar esta avalanche de bobagens irá te proteger das decisões mal-informadas.
É muito trabalhoso criar uma estória verdadeira, baseada em evidência. O autor deve ter treinamento e experiência no assunto, com referências científicas e um trabalho minucioso. Por exemplo: a preparação de um episódio do meu podcast requer dezenas de horas de trabalho e a checagem de inúmeras referências. Mesmo publicações em jornais e televisão mais sérios podem relatar estórias exageradas e/ou enviesadas. Isto também é consequência parcial do fato de que precisamos de um certo drama para prestar atenção. Uma estória sem uma conspiração, sem vilão, sem uma vítima de uma injustiça e sem herói, não atrai a atenção, nos faz dormir.
Outro ponto importante é que uma boa estória gera prazer através de mecanismos do sistema de recompensa do cérebro, envolvendo dopamina, endorfinas, ocitocina, entre outros biomediadores. As empresas de mídia social utilizam algoritmos para identificar a melhor forma de criar um comportamento condicionado utilizando estórias curtas e recompensadoras. Estamos enfrentando uma crise crescente de poluição cognitiva causada por estórias que não buscam estar corretas ou criar benefício humano, mas sim criar um comportamento repetitivo, que é ainda mais prejudicial na fase de desenvolvimento para crianças e adolescentes. Somos todos ratinhos num grande experimento pavloviano coordenado pelas grandes empresas de mídia social.
Um sistema complexo é composto por um número grande e diversificado de componentes interdependentes, com uma relação não linear, e não pode ser explicado com estórias simples de causa e efeito. Portanto, entender um mundo complexo em que vivemos através de estórias é fundamentalmente falho. A cognição humana evoluiu para trabalhar em time e resolver problemas locais em pequena escala e não foi desenhada para entender a língua que o universo fala. Para tal, precisamos de um tradutor: a ciência. Por exemplo, para entender a biologia você precisa da estatística, para entender a física você precisa da matemática, para prever o tempo você precisa de uma modelagem de computador.
O desafio nem é tanto não saber, e sim não ter consciência de que não se sabe. O ruído gerado pelo alto volume de estórias e informações que cada pessoa recebe ofusca a complexidade crescente e dificulta o reconhecimento da nossa própria ignorância. Confiar na ciência, filtrar o barulho cognitivo causado pelas estórias do dia a dia e reconhecer a própria limitação cognitiva, permitirá decisões mais sábias.
Meu nome é Kald Abdallah, sou paranaense, cresci numa cidade pequena no norte do Paraná chamada Borrazópolis. Eu sou médico formado pela Universidade Estadual de Londrina (minha querida UEL). Fiz residência e doutorado na Faculdade de Medicina da Universidade de São Paulo, pós-doutorado pela Faculdade de Medicina da Universidade de Harvard, em Boston nos EUA. Já trabalhei na prática clínica, como professor de medicina, executivo e pesquisador.
Há 23 anos me dedico à pesquisa clínica e desenvolvimento de imunoterapia contra o câncer, sendo nos últimos 17 anos morando e trabalhando nos EUA. Recentemente, comecei um projeto que tem sido uma verdadeira paixão para mim: o Conexão Sapiens – A ciência desvendando você!
É um podcast que busca ir além das estórias passageiras, oferecendo uma exploração profunda e duradoura com o objetivo de sintetizar a ciência como forma de apoio da sua jornada de crescimento social, pessoal e cognitivo. Esta síntese é o resultado de mais de duas décadas de estudo e busca aplicar a ciência de forma sistemática.
No episódio 02, intitulado “Primata contador de estórias em um sistema complexo”, busco aprofundar neste assunto de hoje.
Convido você a participar dessa jornada de crescimento social, pessoal e cognitivo comigo! Por favor, divulgue! Para ouvir o podcast, acesse uma das plataformas abaixo:
*Kald Abdallah é médico, pós-doc pela Harvard University, e apresentador do Podcast Conexão Sapiens