Como a era digital transformou a fofoca e o julgamento social e como isso influencia a vida das pessoas para além da fechadura
Camila Menezes* Publicado em 04/11/2025, às 06h00

A dinâmica de observação da vida alheia mudou com a ascensão das redes sociais, onde a exposição se tornou massiva e o julgamento, mais cruel, refletindo uma comparação constante entre vidas aparentemente perfeitas e as realidades ocultas por trás delas.
A curiosidade humana, conforme apontado por Freud e Lacan, leva as pessoas a espiar e julgar a vida dos outros, muitas vezes como uma forma de lidar com suas próprias inseguranças e frustrações, perpetuando preconceitos como machismo e racismo.
Apesar do acesso a informações sobre a vida de figuras públicas, a desconexão emocional e a falta de empatia se intensificam, resultando em um consumo superficial de narrativas editadas que não refletem a complexidade da experiência humana, enquanto a responsabilidade coletiva sobre esses julgamentos permanece negligenciada.
Antes sentaríamos todos na calçada para olhar a vida. As cadeiras na frente de casa eram o auditório confortável para o show da vida alheia, como a da filha da vizinha ou a do marido de fulana. Um palco módico, do tamanho da rua, no máximo do bairro. E mais: havia o cuidado em se manter alerta, se falávamos da vida do outro, depois poderíamos ter a nossa escancarada até as entranhas por quem nem nos conhecia direito, mas sabia absolutamente tudo sobre nós.
Hoje não tem mais segredo, a exposição foi revista e estamos todos confortáveis apenas lidando com a tendinite dos pulsos. O calo da língua afiada foi revisto, somos silenciosos, mas conseguimos acabar com a reputação de alguém com um alcance ainda maior, nosso quintal é maior do que o mundo!
Higienizados, protegidos e, aparentemente, inofensivos, damos likes e “dislikes” com a mesma maestria da fofoca na calçada. Esse ar moderno, esse distanciamento dos mundos, repletos de comentários, pode nos tornar ainda mais ferozes. Não?
Freud, renomado psicanalista alemão, dizia que há em cada um de nós um impulso que se alimenta do desejo, da curiosidade e, muitas vezes, da comparação. Então, cientificamente, espiar a vida do vizinho (ou do influenciador) não seria mera distração, mas uma forma inconsciente de lidar com nossas próprias faltas, silêncios, dores e com as perguntas que ecoam tão intimamente quando algo em nossas vidas não vai bem. Em resumo, comparar nossas vidas traz algum tipo de conforto. Um quentinho gostoso.
Antes era na calçada, com uma comparação talvez mais transparente: falávamos, mas também éramos vistos. Numa exposição mútua que deixava o jogo mais equilibrado. Hoje, a dinâmica mudou. O celular, que virou escudo para alguns, é uma espada cortante na vida de outros. Escondidos atrás da tela, somos figuras intocáveis, ilibadas, perfeitas, nunca erramos.
A moça que tem milhões de seguidores e está recém separada de um casamento que se mostrava sólido, com três filhos, casa, carro, avião, é a bola da vez. Podemos chamar ela de feia? Não. Mas podemos olhar com mais ética para as suas escolhas sobre como ganhar dinheiro. Podemos falar que ela traiu? Não, não conhecemos assim tão de perto. Mas podemos julgar as escolhas amorosas da mulher recém separada. Podemos dizer que o atleta é um cara interessante e por isso conquistou a mocinha? Não, o palco do julgamento mudou, mas os preconceitos antigos estão latentes: “Um preto com uma loira? É a nova Xuxa e o o novo Pelé!” Todo mundo julga, a gente já sabe disso. E no meio do que chamam de opinião vemos machismo e racismo, o que é crime.
Enquanto disparamos comentários aleatórios seguimos acreditando no mito, que criamos para aliviar nossa culpa, de que o lugar deles é seguro demais para que sintam dor. Eles têm dinheiro e fama, que aguentem a fogueira, é o preço. Ignoramos, ignorantes, que por trás de todo esse glamour, eles também são como nós: carregando cansaços, histórias, confusões internas, humanos que sangram. Com mais conforto e com uma conta bancária muito diferente, é verdade! Mas então vale tudo para atingir os que não reconhecemos como iguais?
Lacan (psicanalista francês) diria que o nosso olhar para a vida alheia é, na verdade, um espelho. O que enxergamos na vida do outro não é bem isso, mas sim a nós mesmos. Enxergamos a nossa própria falta, o nosso próprio desejo, tudo estampado em outro corpo. Complicado? Não, não mesmo. A influenciadora parecia caminhar no paraíso com sua vida perfeita, mas agora está divorciada, com três filhos e ainda foi traída pelo novo amor. No fundo, isso nos alivia: “Ah, então ser famosa e rica não resolve tudo?”. É como se, por um momento, o brilho dela fosse ofuscado pela nossa necessidade de provar — para nós mesmos — que ninguém está imune à dor. A vida real bate em todos. Com milhões de seguidores, ou não.
O grande paradoxo das redes sociais é que, mesmo com tanto acesso à vida alheia, não acessamos ninguém verdadeiramente. Antigamente, quando observávamos o vizinho na calçada, havia um senso de proximidade. A troca de olhares carregava, vez ou outra, certa empatia. Havia algo tangível nos gestos do outro. Agora, com as redes, há um distanciamento cada vez mais profundo e cruel. Consumimos pedaços editados de uma vida como se fossem a história toda. O mito da vida perfeita ou do fracasso absoluto é vendido como um grande filme. Infelizmente ainda não passamos a enxergar e a nos questionar sobre os cortes e os filtros que todos nós fazemos por trás das câmeras.
A vida real é o conteúdo que todos acessamos, isso banaliza o humano. A moça das publis não é só feita de posts bonitos ou entrevistas ensaiadas. Ela é, antes de tudo, uma mulher lidando com o balanço sentimental de um divórcio enquanto continua cumprindo uma função pública (não precisava ter dado as mãos aos tigres, sabemos, mas há uma vida real ali). O jogador, mesmo vestindo a camisa de um país inteiro, ainda é um homem preto que precisa navegar suas próprias incertezas e enfrentar o racismo com frequência. E se errar? (sim, ele também não precisava ter dado as mãos aos tigres).
Acontece que com os holofotes não há direito de resposta (a CPI tentou, mas a moça não se ajudou) e nem tempo para amadurecer. Se errarem, pagam em dobro.
Mas então, afinal, por que seguimos a moça com corpo bonito, que não sabe sambar, que tem babás para tomar conta dos filhos enquanto a maior parte da população se reveza nas baldeações do trem, se nem conseguimos sambar todos os finais de semana? Por que queremos saber por quem o jogador de futebol se apaixonou ou com quem ele traiu a fulana? Ora, se somos nós quem damos o palco, isso também nos daria o direito de atirar os tomates?
Se seguíssemos o jogador pelo futebol, a cama dele não nos interessaria. Se seguíssemos a mãe que se vira com um salário por mês e ainda estuda, a moça que não sabe sambar não teria chegado ao tigrinho. Se soubéssemos quem é a passista que dança mais bonito no Rio de Janeiro inteiro, déssemos likes e mais likes em seus vídeos de dança, ninguém chegaria perto de pegar o seu lugar no samba, na arte, na vida. Mas nos agarramos ao direito de negar que temos, nós também influência sobre todo esse mar de lama.

*Camila Menezes é psicóloga e psicanalista