A gente quer mão preta com espaço pra pensar um país para as Selenas, e as professoras das Selenas
Juliana Teixeira* Publicado em 30/11/2022, às 06h00
Cecília Olliveira, jornalista co-fundadora do The Intercept Brasil observa, em suas redes sociais: “assassino branco, símbolos nazistas, signos supremacistas. A imagem: mão preta”. A jornalista comentava a publicação do Estadão de uma imagem de uma mão de uma pessoa negra para ilustrar uma matéria sobre o ataque a tiros em escolas de Aracruz, norte do Estado do Espírito Santo, no último dia 25/11: Cecília acrescenta: “é preciso que jornalistas se posicionem contra estes ‘pequenos erros’, que tem impactos danosos, para que o fazer jornalístico mude”.
Acompanhamos com dor e luto a morte de 4 pessoas, entre elas 1 criança, e o ferimento de mais de 10 pessoas, algumas delas em estado grave, nas escolas alvo do ataque de um adolescente de 16 anos, que efetuou disparos de arma de fogo, e usava um símbolo nazista na roupa que escolheu para o atentado. E várias são as discussões e medidas amplas necessárias para efetivarmos a revolução clamada por Thais Zuccolotto, mãe de Selena, criança de 11 anos morta no ataque, num contexto de crescimento do neonazismo, dos discursos e práticas de ódio em nosso país. Como escreve Thais, “Que a partida da Selena seja o início de uma nova revolução, assim como ela gostava, mas uma revolução baseada no amor e segurança para nossas crianças de todas as etnias, regionalidade, classe social e crença”.
O foco deste artigo de discussão está num desdobramento observado a partir do crime. Por que, mesmo num caso em que o assassino confesso é branco, vemos uma imagem de uma mão negra com um revólver em punhos? Qual a ligação de uma escolha supostamente desinteressada, “ops, um descuido”, com os efeitos de uma estrutura racista que não só desumaniza pessoas negras, como é responsável pela nossa organização econômica, produtiva, e relacional da vida, como também por nossa organização psíquica?
Num crime em que o símbolo nazista é utilizado, e que invoca ideais, para além de vários outros aspectos, de violência, de ódio, e de racismo, por que há uma reiteração dos efeitos desse racismo no momento de escolha de uma imagem para ilustrar um texto jornalístico? Pensar que o racismo constitui nossa organização psíquica é um primeiro ponto de partida para respondermos a essa questão. Para além desse aspecto imagético, por que a pauta “saúde mental”, seja nas perguntas que são elaboradas para a obtenção de informações acerca de um fato, seja no âmbito discursivo de defesa da necessidade de se dar atenção à saúde mental, se faz presente em notícias que envolvem crimes cometidos por pessoas brancas, e não em notícias que envolvem crimes cometidos por pessoas negras?
A naturalização da pessoa negra como pessoa criminosa, ou que representa ameaça à integridade física e moral, representa o sucesso de um projeto colonialista supremacista, que precisou negar a humanidade das pessoas escravizadas, para que os projetos de poder capitalista lograssem seu sucesso ao longo dos anos, e pelos vários territórios, e por inúmeras e incontáveis vidas perdidas pelo escravismo, violência colonial, e projeto político continuado baseado no genocídio da população negra. Para que essa população continue foco desse genocídio, num objetivo sistemático de branqueamento da sociedade brasileira, é necessário desumanizá-la. E faz parte de desumanizar colocá-la constantemente como quem se deve temer, quem se deve exterminar, quem se deve encarcerar, sem dó, sem tanto respeito no momento desse encarceramento. Sem direito a reivindicar-se humana. Sem direito a reivindicar-se como número expressivo nos bancos de imagem de uma produção jornalística sobre crimes. Estamos, pessoas negras, empreendendo esforços para nos livrarmos desse mito negro (Neusa Santos Souza) que as pessoas brancas construíram acerca de como nós deveríamos ser há tanto tempo. Já deu de “ops”, foi um equívoco.
O antirracismo, pra ser efetivo enquanto movimento e deslocamento da sociedade, precisa ser capilar, ou seja, precisa fazer parte de um projeto de toda uma branquitude que ocupa os variados espaços de poder, em todos os setores, aqui, mais precisamente, os que pensam a educação e segurança de crianças e adolescentes; saúde mental; os que pensam segurança pública; e os que pensam o jornalismo. Esse movimento ocorre seja questionando suas atitudes – como a escolha de uma foto para ilustrar um atentado tão violento como este - sejaquestionando ausências de atitudes outras. Mais, é sobretudo levantando-se das cadeiras desses espaços de poder, porque tem gente preta bastante, em números, e em potencialidade e conhecimento, pra se sentar. E sentar com vida. Sentar com as mãos nos notebooks avançados de planejamento urbano, social, e educativo. Sentar com as mãos sem gatilhos acionados. Mãos que cuidam/ram desse país. Mãos que querem Selenas e suas professoras vivas!
*Juliana Teixeira é Professora da UFES. Doutora em Administração pela UFMG. Pesquisadora Associada da Associação Brasileira de Pesquisadores/as Negros/as – ABPN.