O jornalista Antoune Nakkhle compartilha uma história de racismo que sua filha sofreu na escola
Antoune Nakkhle* Publicado em 20/11/2022, às 06h00
Era perto do Natal.
- E a Gabi, como está?
- Tá bem, terminou a escola e está de férias... . Aconteceu uma coisa que ela só contou agora.
- Ah, é? O que?
- Ela foi chamada de macaca na escola. Dois amigos.
- Nossa, mas quando foi isso, Antoune? Que episódio chato!
- Essa é a questão. Ela só contou agora, mas já faz mais de seis meses.
- E ela ficou aguentando isso por todo este tempo em silêncio?
- Infelizmente, sim. É o fim do mundo. E a gente fica com receio de colocar um peso muito grande sobre isso quando conversamos com ela. É péssimo fingir que não aconteceu nada – porque aconteceu! -, mas dá medo de parecer que estamos dando uma importância maior do que é, exagerando, entende, Yuri?
- Se ela demorou tanto tempo para contar pra vocês pode ser por dois motivos. Um, ela ficou tentando entender e, dois: quando entendeu ficou envergonhada e muito triste – disse Liz, nossa amiga, esposa do Yuri.
- Amigo, presta atenção: isso é racismo. Eu sei que é duro reconhecer, mas é racismo e vocês não podem se calar. Precisam fazer alguma coisa.
- Com certeza, senão isso pode se repetir e a Gabi não precisa passar por isso.
- Verdade, Liz. Nem ela nem qualquer outra pessoa negra.
Éramos dois casais naquele jantar de fim de ano. Dois casais brancos. Amigos brancos que se amavam e eram pais. Nunca fomos chamados de macacos. E por incrível que pareça, o casal que não tinha filho preto parecia ter muito claro o que aconteceu na escola. Muito mais do que os pais brancos de uma filha preta. Será porque eles estavam vendo a situação de fora? Ou porque os pais brancos da filha preta eram ignorantes neste assunto? Não há resposta para esta pergunta. A vida é agora. Eles me ensinaram espontaneamente a olhar para o crime de racismo sem filtros embranquecidos.
O racismo chega assim na vida da gente, de repente. Nunca pensamos que o racismo nos rodeia a todo momento e a toda hora nos espeta com olhares ou atitudes quando menos esperamos. A ponto de desconfiarmos de nós mesmos. No meu caso, no inconsciente, era como se alguém me dissesse “você quis adotar um filha preta, agora aguenta. Olha pra frente e não reclama, você sabia que não seria fácil...”.
Ouvi muitas frases assim quando decidimos adotar nossa filha preta. Não é nada disso. Ter um filho preto não precisa ser uma escolha árdua. Sinceramente, não é. Ao contrário. Ter um filho preto é uma ótima oportunidade para um casal branco exercitar o antirracismo. É a chance de perceber que minha filha preta que veio por adoção é tão parecida comigo quanto a mãe dela, com quem me casei e resolvi ser pai. É ensinar sua filha que é possível, sim, ser feliz. E como! E que o problema é do racista criminoso, não dela. Minha filha não é criminosa. Minha filha é uma grande pessoa.
Fiquei pensando naquela conversa com Liz e Yuri no dia do jantar.
Como lidar com isso? Como falar sobre isso com a nossa filha sem machucá-la ainda mais? Será que jogaríamos uma carga muito pesada nela falando sobre racismo tão no início da vida dela? Seria exagero? Ou o melhor seria deixar a vida acontecer e conforme o racismo fosse se apresentando falaríamos em doses homeopáticas?
De novo, o deserto de quem sente, vive uma coisa horrível, mas que parece invenção ou exagero para todos. Nessa hora, quem mais gosta de você vem, dá força, consola, mas na verdade não sabe o que dizer. É desconcertante. Para todo mundo. Dúvidas de um pai branco que imagina, mas nunca sentiu o que seu filho preto sente quando sofre racismo. Um pai que não conhece o remédio para a cura da dor de sua filha quando sofre racismo. E como fica quem sofre o racismo?
Ano novo. Papo reto com a diretora (e dona) da escola. Uma excelente psicóloga com doutorado em pedagogia. Na USP.
A primeira reunião com Milene, a diretora, foi muito boa.
- Isso é um absurdo, aqui na nossa escola nunca admitimos isso, a inclusão é parte importante de nossa missão, NUNCA houve racismo aqui, muito pelo contrário! Este é o primeiro caso de racismo aqui na escola em mais de 20 anos de existência. Isso é um caso isolado. Vamos tomar providências.
Dois dias depois, a surpresa: o mesmo racismo estava sendo cometido com outra aluna, da sala ao lado. No caso dela, o mesmo agressor dizia que ela tinha cor de Bosta. Ele a chamava de B (a letra B mesmo, como ironia). Descobri isso sem querer na porta da escola, quando encontrei uma mãe preta, cuja filha estudava lá também. Falei com ela, que também havia ouvido o mesmo discurso de Milene quando reclamou do racismo com sua filha. Curioso...
Era uma escola fantástica. Ensinou minha filha a pensar e olhar a vida de uma forma muito saudável, de fato. Seis alunos por classe, casinha de madeira na árvore, enfim, uma escola socioconstrutivista referência na época que ensinava os alunos a plantar, cozinhar, fazer horta, havia bate-papo com escritores e muitas outras coisas interessantes. No entanto, tudo isso perde força quando Milene, a diretora, não se mexe e mente quando diz que o caso com nossa filha era o primeiro a acontecer. Teve a coragem de ocultar o caso da outra aluna que, além de ter sido chamada de bosta, foi empurrada do topo da escada da escola depois de levar uma lancheirada na cabeça por este mesmo aluno. Eles tinham sete anos, como minha filha.
Segunda reunião. E então, o que a escola fará? Nós sugerimos na última conversa que fosse feita não apenas atividades em sala de aula sobre o assunto, mas uma reunião com pais e filhos, um bate-papo humanizado, informativo e esclarecedor detalhando todos os pontos do racismo, do crime. Era momento de educar. A todos nós. Resposta:
- Estamos pensando, isso é muito sério, não dá para ser assim, no impulso, sem um preparo, é necessário formatar um projeto. Peço que aguardem. Agradecemos as sugestões que vocês nos trouxeram, mas a escola é que vai decidir o melhor caminho. E isso leva um tempo.
Não dava para esperar. Minha filha precisava e merecia uma resposta. Nós também. A sociedade escolar também. Como seria o dia a dia dela depois disso tudo na escola? Perguntamos se ela queria sair da escola. Ela disse que apesar de tudo, preferia continuar porque adorava os amigos da sala dela e não querida perdê-los.
A escola admitia não saber como agir, mas não aceitava nossas sugestões, estavam analisando qual a melhor atitude a adotar. Conversamos com Denise Carreira, uma amiga que trabalhava numa ong muito interessante, a Ação Educativa que tem, como uma de suas finalidades, a promoção de direitos humanos. A escola não quis a ajuda desta associação que indicamos.
Precisei agir:
- Milene, desculpe, mas eu quero lembrá-la de que não estamos pedindo um favor, é nosso direito pedir uma resposta, uma ação rápida para isso. E é o seu dever. Vou chamar a polícia.
- Antoune, essa reunião está encerrada – falou se levantando como que nos apontando o caminho para a porta. Em breve contaremos a vocês o que será feito. Fiquem à vontade para transferir Gabriela para outra escola, caso não possam aguardar o tempo que for necessário para que possamos pensar em uma atividade para o próximo semestre.
- Não, Milene, esta reunião não está encerrada (agora eu também estava de pé). Nós exigimos uma reunião com pais e filhos. Não se atreva a repetir esta sugestão – respondi.
- Você está brincando comigo??? O que é isso! Não se atreva a sugerir que minha filha saia desta escola sem resolver este crime de racismo! É nosso direito querer esclarecer este assunto que ocorreu dentro da sua escola! Respondeu minha companheira à época, furiosa. Agora éramos os três em pé.
- A escola não quer esta reunião, Antoune.
- Ok, então vou denunciar você e a sua escola para os órgãos adequados. Uma pergunta, Milene: você, como ser humano, como mulher, já se colocou no lugar da Gabriela? No seu caso, nunca sofreu discriminação por ser judia? Não se lembra como isso dói?
(Com o desdenho e o cinismo daqueles que vivem na bolha e amam isso):
- Olha, Antoune, sinceramente não consigo me colocar no lugar dela porque nunca sofri discriminação e muito menos racismo. Sou da comunidade judaica e sempre estudei em escolas onde todos eram judeus, então isso nunca fez parte da minha realidade...
- Por favor, Milene, não ofenda nem fale pela comunidade judaica. Isso não é justo.
A tal reunião de pais (sem os filhos, mas ao menos conseguimos uma reunião) foi marcada. Me senti muito pressionado pela calma da escola e também obrigado a pressionar a escola para que esta reunião acontecesse. Eu e minha esposa nos tornamos um verdadeiro exército antirracista sem ainda conhecer este termo. Consegui que a escola permitisse a participação da Ação Educativa na reunião. Milene recebeu a nós e às profissionais da Ação Educativa (Denise Carreira e Jaqueline Santos) de cara amarrada, mas o que importa é que estávamos lá após passarmos dias escrevendo e ligando para os pais os convidando e lembrando da data da reunião – a escola mandou um aviso apenas para os pais da sala da Gabi.
Ou seja, fizemos o que seria o papel da escola. Errado, mas ok, precisávamos fazer isso logo para que algo acontecesse. Tristeza e cansaço, mas a certeza de que fazíamos o correto. Parecia que estávamos produzindo um megaevento, pois, apesar de impulsionados pelo senso de justiça, raiva e amor, nos sentíamos muito felizes por estarmos conseguindo fazer um pedaço do que era certo. Imprimimos várias cópias da matéria do mês da Revista TPM que trazia na capa matéria com Lázaro Ramos e Taís Araújo sobre a dificuldade de ser negro no Brasil. Entregamos para todos os presentes na reunião.
Meta atingida, conseguimos abrir um pouco os olhos dos pais e educadores da escola (os poucos que foram convidados pela diretora, ressalte-se isso!). A Ação Educativa deu uma aula maravilhosa sobre racismo e sobre a lei aqui no Brasil. Gisela, a mãe do aluno criminoso chorou, pediu desculpas, disse que dos três filhos dela, este era o único que se comportava assim.
Fiquei emocionado também e com dó desta mãe. Deve ser muito triste ter um filho racista e ninguém está livre isso, eu pensava. Errado: embora o racismo seja estrutural, ele também vem de casa, é repetição de modelo adquirido. Na época eu era ignorante quanto a isso. Hoje sei que precisamos lutar contra os modelos adquiridos que entendermos não serem dignos nos dias atuais. Nos reconstruirmos, mesmo que isso leve uma vida.
Depois da reunião, dias depois, o garoto novamente chamou minha filha de macaca.
- Henrique, você não viu o que a professora disse, racismo é uma coisa muito feia e, além disso, é crime!
- E daí, Gabi, eu não vou ser preso, sou criança (devolveu o racista dando de ombros).
Seguimos a saga...
Ainda hoje, a discussão sobre o racismo nas escolas é superficial. Principalmente porque quase sempre vem a partir do olhar de um branco. Ainda hoje fica muito claro que é um tema que precisa ser profundamente estudado com urgência pelas próprias escolas. Estudar é pouco. Isso implica em humildade, em tentar se colocar na situação da pessoa que sofre racismo. Empatia. Empatia. Seriedade. Admitir que não se sabe como lidar com o crime de racismo é um bom começo. Buscar ajuda também. Depois vem a pedagogia, a psicologia. E para isso é essencial que todos, todos admitamos que somos racistas e, em se tratando das escolas, a começar pelos educadores.
Dois meses depois: E daí, o meu filho não pode ser preso!
Na festa de aniversário do Caio, levei Gabi, dei os parabéns para ele e estava indo embora para depois buscá-la ao final, quando fui convidado pela mãe da criança racista para sentar um pouco, ela estava em uma discussão importante com outras mães e queria minha opinião.
- Obrigado, Gisela, preciso terminar um trabalho, podemos conversar depois?
- Ah, não Antoune, fica só um pouquinho, estamos conversando sobre um assunto importante e quero saber o que você pensa. Estou aqui dizendo que meu filho está sendo estigmatizado na escola só porque aconteceu aquele episódio chato com sua filha e com a outra aluna e eu não acho justo! O que você acha??
Hum...não aguentei:
- Olha Gisela, realmente, é muito chato. Ao mesmo tempo, cada um tem os seus problemas, não é mesmo? Minha filha, por exemplo, sofreu crime de racismo e foi seu filho que fez. Então, só posso dizer que sinto muito, que deve ser muito triste ter um filho que pratica crime de racismo e depois fica estigmatizado, mas vou dizer: é muito pior ver a filha da gente sendo vítma de racismo. Você já imaginou o que é isso?
(De pé e apontando o dedo para mim):
- Você está chamando meu filho de criminoso?! É isso?? Eu não admito!
Respirei fundo lentamente e disparei, com uma calma e uma firmeza que até então eu não conhecia em mim:
- Não Gisela, eu não estou chamando seu filho de criminoso. Quem chama seu filho de criminoso é a lei. E abaixe a mão em minha direção, não aponte o dedo para mim.
- E daí, ele não pode ser preso! (fez o mesmo gesto nos ombros que o filho dela fez para minha filha quando falou com ela).
- Pode, sim: ele e sua família podem ser denunciados ao conselho tutelar. Seu filho é menor de idade, mas os pais respondem por ele e pelo crime cometido por ele. Este crime é inafiançável e não prescreve. Se a coisa avançar, o conselho pode até intimar vocês, mandar uma profisisonal para falar com cada um de vocês da família indivivualmente e, se ficar claro que há repetição de modelo adquirido você e seu marido podem até perder a guarda dele. Mais tarde, quando ele completar 16 anos, podemos fazer a queixa contra ele novamente. E ele pode ser preso. Assim é a lei. Chega deste assunto. Até logo.
Raiva e alívio por ter conseguido me expressar com educação, para dizer o mínimo.
No mês em que se comemora o Dia Nacional da Consciência Negra, soubemos dos crimes de racismo praticados no colégio Porto Seguro em São Paulo bem como da expulsão dos oito alunos. Sou a favor da explusão destes alunos e sei também que isso não é tudo. Não soluciona. Mas é o começo. Protege quem sofreu o crime de racismo e doscriminação. Precisamos de um projeto educativo, de políticas públicas para tratar disso também.
Consciência negra. Eu me pergunto: consciência do quê? A consciência mais importante de todas é a de que somos todos igualmente ra-cis-tas. Precisamos ser antirracistas. É disso que devemos nos lembrar diariamente. Dizer que o racismo é estrutural não diminui nossa responsabilidade. Ao contrário. Continuamos sendo racistas.
Hoje, quando me sento para jantar com Liz e Yuri já sei que ao menos somos antirracistas.
P.S.: No próximo artigo vou abordar o racismo em relação ao cabelo ruim – assim mesmo, como falavam nossas avós sobre o cabelo das empregadas que sempre escravizamos ao longo da vida.
*Antoune Nakkhle é jornalista, assessor de comunicação e imagem e pai da Gabi, de 18 anos. Mulher preta e adotada.