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Caso Ana Hickmann e a Violência Processual de Gênero

Em casos de violência doméstica e de gênero infelizmente é comum que a vítima seja revitimizada diversas vezes e assim sofra ainda mais

Anelise Borguezi* Publicado em 24/01/2024, às 06h00

Ana Kickmann está sendo vítima de diversos tipos de violência - Foto: divulgação
Ana Kickmann está sendo vítima de diversos tipos de violência - Foto: divulgação

Logo após as primeiras notícias do caso que envolve a apresentadora Ana Hickmann e seu então marido foi possível notar que ela estava sendo vítima de outro tipo de violência, além da doméstica denunciada, a violência processual de gênero.

A prática, também conhecida como “lawfare de gênero”, consiste na utilização do direito e de manobras processuais como arma de guerra contra as mulheres de modo a constrangê-las, negar seus direitos garantidos por lei ou até para obter alguma vantagem indevida, especialmente quando essas mulheres optam por encerrar um ciclo de violência em que estão inseridas e denunciar seus agressores, podendo ser praticada tanto pelo agressor e seus representantes processuais, quanto por demais atuantes do processo como magistrados e promotores de justiça, como ocorreu no caso da apresentadora.

No caso de Hickmann, é possível destacar três ocorrências que podem ser consideradas como violência processual de gênero.

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Quando denunciou as agressões sofridas pelo ex-marido perante a Vara de Violência Doméstica e Familiar Contra a Mulher, já solicitou, também, o pedido de divórcio, o qual foi negado pelo magistrado, que determinou que a solicitação fosse feita perante uma vara de direito de família. Tal decisão, contudo, contraria a própria Lei Maria da Penha (Lei nº 11.340/06) que prevê em seu artigo 14-A que “a ofendida tem a opção de propor ação de divórcio ou de dissolução de união estável no Juizado de Violência Doméstica e Familiar contra a Mulher”. Ou seja, a negativa do pedido do divórcio desrespeitou a lei e postergou que Ana Hickmann, uma mulher vítima de violência doméstica, pudesse se ver divorciada de seu agressor com maior facilidade e agilidade, sem a necessidade de mover uma nova ação no judiciário.

Em seguida, o ex-marido entrou com pedido de prisão contra ela, alegando a prática de alienação parental sem que houvesse quaisquer indícios ou fundamentos para tanto, tendo sido a ação rejeitada pelo Ministério Público uma vez que a atriz e apresentadora estaria cumprindo rigorosamente com suas obrigações em relação ao filho do ex-casal. Sob este aspecto, pontua-se que a Lei de Alienação Parental (Lei nº 12.318/2010) é bastante criticada, pois, dentre outros motivos, é constantemente utilizada como forma de intimidação de mães vítimas de violência, permitindo que o agressor alegue alienação parental como estratégia para obter vantagens em questões de custódia, mesmo quando não há evidências reais de alienação, como ocorreu no caso aqui discutido. Pontua-se, também, que sequer existe a previsão de prisão pela referida lei, que prevê punições como advertências, multas e inversão da guarda. Ou seja, foi uma forma de se utilizar de meios processuais para causar ainda mais abalos psicológicos e emocionais à denunciante.

O ex-marido de Ana Hickmann ainda utilizou as alegações de alienação parental para denunciá-la perante a Corte Interamericana de Direitos Humanos. Tal atitude não apenas adiciona uma camada de complexidade ao caso, mas também escancarou questões sobre o uso da lei como uma ferramenta de violência processual. Ao buscar a intervenção de uma corte internacional, o ex-marido não apenas amplificou a exposição midiática do caso, mas também introduziu uma dimensão complexa, uma vez que a Corte Interamericana sequer recebe denúncias contra indivíduos, apenas contra Estados.

Felizmente, algumas medidas vêm sendo tomadas para frear esse tipo de conduta, evidenciando uma preocupação em não apenas punir os perpetradores, mas também em promover a conscientização dos profissionais envolvidos no sistema judiciário.

Dentre essas medidas, temos o Protocolo para Julgamento com Perspectiva de Gênero do CNJ, que busca orientar magistrados para uma atuação mais sensível às questões de gênero e violência e, consequentemente, mais justa. Foi criada também Ouvidoria da Mulher do CNJ e do Ministério Público, oferecendo canais específicos para denúncias e acompanhamento de casos relacionados à violência de gênero no âmbito judicial.

No âmbito legislativo, entrou em vigor em 2021, a Lei Mariana Ferrer (Lei nº 14.245/2021), que visa proteger a dignidade física e psicológica das vítimas e testemunhas durante audiências, sob pena de responsabilização civil, penal e administrativa aos que atentarem contra o disposto na lei.

Além disso, a Lei nº 14.713/2023, ao proibir a fixação de guarda compartilhada em casos de violência doméstica, reforça a proteção das vítimas e sinaliza um avanço concreto na construção de um ambiente jurídico mais seguro, de modo que pode barrar as denúncias de alienação parental contra as vítimas de violência que têm filhos com seus agressores.

Em conclusão, o caso envolvendo Ana Hickmann destaca a presença alarmante da violência processual de gênero, evidenciando a utilização do sistema judiciário como ferramenta de intimidação e desrespeito aos direitos das mulheres. Mas, em paralelo, é preciso se reconhecer que ferramentas estão sendo criadas para dirimir e punir tal violência, demonstrando avanços no sentido de conscientizar e proteger vítimas no âmbito judicial, sinalizando um progresso significativo na construção de um ambiente jurídico mais seguro e justo para as mulheres.

*Anelise Borguezi, Pós Graduada em Direito pela Universidade de São Paulo e sócia do Borguezi e Vendramini, Advocacia para Mulheres e Minorias