O fenômeno da adultização e parentificação expõe crianças a riscos emocionais e sociais nas redes sociais
Ivar Brandi* Publicado em 15/08/2025, às 06h00
O ano de 2025 marca um divisor de águas na relação dos brasileiros com as redes sociais. Vivemos um momento de reflexão coletiva sobre os impactos dessas plataformas na saúde mental e, em especial, no desenvolvimento neuropsíquico de crianças e adolescentes.
O primeiro sinal de alerta veio ainda em dezembro de 2024, quando o Dicionário Oxford elegeu "brain rot" ("apodrecimento cerebral") como a palavra do ano. O termo traduz um fenômeno neurológico preocupante: as alterações cognitivas e emocionais decorrentes do consumo desmedido de informações superficiais e fúteis divulgadas nas redes sociais. Esse consumo excessivo de conteúdo rápido e hiperestimulante, que não leva a qualquer atitude reflexiva, induz um estado de letargia psíquica e efeitos diversos, como fragmentação da capacidade atencional, comprometimento dos processos de aprendizagem e deterioração das funções executivas responsáveis pela tomada de decisões, motivação e gerenciamento emocional.
Em 13 de janeiro de 2025, testemunhamos um momento histórico com a sanção da Lei nº 15.100/2025, que proíbe o uso de dispositivos móveis por estudantes da educação básica em todas as instituições de ensino do país, públicas e privadas. Esta medida resultou da mobilização social catalisada pelo impacto da obra "A geração ansiosa", do psicólogo Jonathan Haidt, professor da Universidade de Nova Iorque. Haidt estabelece uma associação entre o uso inadequado das redes sociais e a epidemia de transtornos mentais que acomete crianças e adolescentes em diversos países.
Nos últimos dias, o debate ganhou nova dimensão com a repercussão do vídeo produzido pelo influenciador Felca, que expôs a exploração sistemática de crianças e adolescentes por influenciadores que construíram impérios financeiros milionários às custas da exposição e erotização de menores em redes sociais. A denúncia trouxe à tona dois conceitos fundamentais para compreendermos os riscos das crianças contemporâneas: adultização e parentificação.
Embora fenômenos distintos, adultização e parentificação frequentemente coexistem e representam formas silenciosas e devastadoras de violência contra a infância.
A adultização pode ocorrer de diversas formas, desde a exposição precoce a conversas e conteúdos inadequados para o estágio de desenvolvimento neuropsíquico da criança até a erotização prematura, que alcança risco ainda maior quando amplificada pelos ambientes virtuais. Crianças e adolescentes não estão preparados para todos os riscos que envolvem a exposição da individualidade nas redes, não devem ser envolvidas em preocupações como alcance, engajamento, “publi post”. Quanto maior a exposição, maiores os riscos à perversidade do mundo virtual, cyberbulling e cancelamento.
A parentificação configura uma inversão de papéis e ocorre quando a criança assume responsabilidades emocionais ou práticas que deveriam ser exercidas exclusivamente pelos adultos. No universo digital, essa dinâmica ocorre quando crianças ou adolescentes são transformados em influenciadores e se tornam os principais provedores financeiros da família. No mundo real, a parentificação transcende o conceito tradicional de "ajudar em casa" e ocorre quando menores se tornam confidentes emocionais dos pais, cuidadores prematuros de irmãos ou responsáveis pelo bem-estar de avós.
Quando uma criança é exposta em redes sociais com comportamentos erotizados, visando engajamento e patrocínios, testemunhamos a convergência devastadora entre adultização e parentificação. Nesse cenário, os riscos se amplificam exponencialmente, criando um ambiente tóxico para o desenvolvimento neuropsíquico saudável.
Ambos os fenômenos expõem o cérebro imaturo a estímulos inadequados, provocando alterações funcionais e estruturais em diversas áreas cerebrais. Qualquer evento adverso durante o neurodesenvolvimento infantil estabelece fatores de risco significativos para transtornos mentais na vida adulta. As alterações de neuroplasticidade que acometem o cérebro em desenvolvimento deixam marcas permanentes. Adultos que vivenciaram eventos adversos na infância apresentam maior predisposição para dificuldades em estabelecer relações com limites saudáveis, tendência a relacionamentos utilitários, perfeccionismo patológico e intenso medo de abandono.
O espectro de consequências abrange transtornos de personalidade, condições neuropsíquicas diversas como ansiedade, depressão, estresse pós-traumático, transtornos do sono e até doenças metabólicas como obesidade e diabetes tipo 2, decorrentes do estresse crônico estabelecido pela ativação persistente do eixo hipotálamo-hipófise-adrenal. Adultos que foram crianças parentificadas frequentemente não conseguem reconhecer quem são quando param de cuidar de outros.
É fundamental que educadores e profissionais de saúde desenvolvam competências para reconhecer os sinais sugestivos desses fenômenos: crianças excessivamente preocupadas com questões adultas, que assumem cuidados além do esperado para sua faixa etária, que demonstram comportamentos sedutores ou erotizados inadequados, ou que apresentam dificuldades para brincar espontaneamente com seus pares. Falas e atitudes sexistas, preconceituosas e discriminatórias também constituem indicadores que merecem observação cuidadosa.
Os debates que permeiam nossa sociedade nos últimos meses reforçam a urgência de desenvolvermos programas abrangentes de educação digital. As redes sociais foram incorporadas às nossas vidas sem que tivéssemos conhecimento pleno sobre a gravidade dos riscos associados ao seu uso inadequado. Não podemos cair no reducionismo equivocado e tratar a adultização como "culpa dos pais" ou resultado exclusivo da ação de influenciadores inescrupulosos. Trata-se de um fenômeno coletivo que envolve todos nós. O risco se estende desde a adultização de crianças até o vício em redes sociais e "brain rot" de adultos. Estamos todos navegando no mesmo oceano de insensatez digital.
A proteção efetiva da infância exige que os adultos assumam a responsabilidade de criar e preservar relações com limites e hierarquias saudáveis. Precisamos estabelecer tempo e espaços seguros onde crianças possam simplesmente ser crianças. Este não é um imperativo moral abstrato, nem deve ser reduzido a um debate ideológico polarizado. Trata-se de uma necessidade para a formação de adultos mentalmente saudáveis e proteção da coletividade, com embasamento científico, epidemiológico e neurobiológico.
O ano de 2025 pode ser lembrado como o momento em que finalmente despertamos para a magnitude do desafio que enfrentamos. A questão que se apresenta é: seremos capazes de transformar essa consciência em ação efetiva, protegendo as gerações futuras dos riscos que estamos começando a compreender?
*Dr. Ivar Brandi é neurologista com atuação em neurologia da cognição e do comportamento e neuropsiquiatria, com mais de duas décadas de experiência. Mestre em Medicina e Saúde pela UFBA e especialista em Neurociências do Comportamento pela PUC/RS, dedica-se ao estudo da neurodiversidade e aos impactos das tecnologias digitais no desenvolvimento neuropsíquico. Acredita no poder transformador do conhecimento e no potencial da neurociência contribuir para a construção de uma sociedade menos desigual e mais saudável. É divulgador científico, realizando palestras em escolas e empresas.