As vítimas de desastres naturais que sofrem estresse pós traumático podem ter tido ligações diretas ou indiretas com o evento
Cristina Florentino* Publicado em 18/07/2024, às 06h00
As tragédias naturais, como as enchentes devastadoras no Rio Grande do Sul, deixam marcas profundas não apenas no ambiente físico, mas também na psique das pessoas afetadas. Vítimas diretas e indiretas, incluindo equipes de resgate, terapeutas, jornalistas e a população em geral, estão mais suscetíveis ao desenvolvimento de transtorno de estresse pós-traumático (TEPT).
Há algumas semanas, em meu canal no YouTube, ministrei uma aula sobre como manejar traumas decorrentes de tragédias naturais, como temos visto no Rio Grande do Sul. Hoje, dia 21 de maio, a Defesa Civil informou que o número de pessoas desaparecidas é de 88 e há 806 feridos. O nível das águas do Lago Guaíba, em Porto Alegre (RS), voltou a subir, chegando a 4,32 metros. O RS tem 581.633 desalojados, 76.188 pessoas em abrigos e contabiliza 155 mortos.
Relatórios divulgados pelo Conselho Regional de Psicologia do Rio Grande do Sul indicam que a prevalência do TEPT em vítimas diretas de desastres, em um ano, varia entre 30% e 40%; para equipes de resgate, entre 10% e 20%; e para a população em geral, entre 5% e 10%, sendo a extensão da exposição ao desastre o principal fator para o desenvolvimento da doença. Pesquisas da OMS revelaram que a maioria das pessoas expostas a um trauma irá se recuperar, mas o tratamento é delicado e pode ser demorado. Por isso, é primordial divulgar informações confiáveis para amigos, familiares, terapeutas e todos os envolvidos no resgate e acolhimento das pessoas afetadas pelas enchentes.
Os traumas originados por desastres naturais têm características específicas devido à natureza abrupta e muitas vezes devastadora desses eventos. Os principais fatores de risco incluem a extensão da exposição ao desastre, perda de entes queridos, destruição de propriedades e a própria ameaça à vida.
Os sintomas de TEPT e outros transtornos relacionados ao trauma podem incluir:
Os primeiros cuidados psicológicos (PCP) são essenciais para a estabilização emocional imediata das vítimas de desastres. Segundo o Instituto Brasileiro de Trauma, esses cuidados incluem:
Durante tragédias e crises, as palavras que escolhemos podem ter um impacto duradouro nos sobreviventes. Substituir frases potencialmente prejudiciais por alternativas que reconheçam e validem a experiência emocional dos afetados é crucial para facilitar a autorregulação. Sustentar um ambiente seguro, sem exacerbar o trauma, requer uma comunicação meticulosa e reflexiva, elementos essenciais no manejo eficaz do trauma.
Evitar: "Isso aconteceu por algum motivo."
Por quê: Cada pessoa reage de forma diferente.
Alternativa: "Embora eu não esteja vivendo o que você está vivendo, consigo ver a sua dor."
Evitar: "Tenho certeza que você vai superar isso rapidamente."
Por quê: Seja realista, evite sugerir que a dor é de fácil resolução.
Alternativa: "Talvez leve algum tempo para isso melhorar, enquanto isso, você pode contar comigo".
Para lidar com os efeitos do trauma, é fundamental que as vítimas e aqueles que as apoiam pratiquem estratégias de autocuidado e autorregulação emocional:
Práticas de Mindfulness: Exercícios de respiração, meditação e yoga reduzem a ansiedade e ajudam a focar no presente, diminuindo pensamentos intrusivos e aumentando a sensação de calma.
Atividades Físicas Regulares: Caminhadas e exercícios leves liberam tensões físicas e endorfinas, promovendo o bem-estar.
Conexão Social: Manter contato com familiares e amigos e participar de grupos de apoio cria um senso de comunidade, permitindo a troca de experiências e estratégias de enfrentamento.
Diário de Emoções: Escrever sobre sentimentos e experiências ajuda a processar o trauma e a entender melhor os próprios sentimentos.
Terapia: Consultar terapeutas é fundamental para tratar TEPT e outros transtornos relacionados ao trauma, com abordagens específicas adaptadas às necessidades da pessoa.
A combinação dessas estratégias pode criar uma abordagem holística para a recuperação, permitindo que as vítimas de trauma desenvolvam habilidades para lidar com suas emoções, melhorar seu bem-estar geral e, de alguma forma, reduzir o risco de desenvolver doenças psiquiátricas mais graves.
É importante que os sobreviventes de desastres naturais tenham acesso garantido à saúde mental. Governos e instituições devem assegurar a oferta de serviços psicológicos e psiquiátricos acessíveis. Além disso, campanhas de conscientização sobre os sintomas do TEPT e a importância da busca por ajuda profissional são fundamentais. O suporte psicológico não deve ser apenas imediato, mas contínuo, para auxiliar na recuperação a longo prazo.
O manejo de traumas decorrentes de tragédias naturais requer uma abordagem compreensiva que envolve a identificação de sintomas, a prestação de primeiros cuidados psicológicos e a implementação de estratégias de autocuidado e autorregulação emocional. É igualmente fundamental assegurar que os direitos dos sobreviventes ao acesso à saúde mental sejam respeitados e promovidos. A resiliência e a recuperação são possíveis com o apoio adequado, ajudando as vítimas a reconstruírem suas vidas após a adversidade.
“Como a vida está no fio. Se o planeta Terra levantar o ombrinho, tudo se desfaz. Esse é um ensinamento básico de Buda, que nada é fixo” - Monja Coen
*Cristina Florentino, psicóloga e uma das principais mentoras em psicoterapia, manejo de traumas e Constelação Familiar no Brasil. Formada em psicologia, é professora e desenvolveu um sistema terapêutico próprio que combina a psicologia com práticas espirituais. Atualmente, ela conta com uma plataforma que reúne mais de 70 terapeutas especializados em psicoterapia, manejo de traumas e Constelação Familiar, atendendo inclusive internacionalmente