Vídeos ingênuos no YouTube Kids contém propaganda disfarçada para crianças
Ligia Kallas* Publicado em 06/11/2025, às 06h00

A publicidade infantil, embora proibida no Brasil, persiste de forma disfarçada em plataformas digitais, influenciando o consumo de crianças através de vídeos de influenciadores. Isso gera um novo tipo de desejo, onde as crianças aspiram a produtos não por sua utilidade, mas pela influência de figuras populares.
Dados do Programa Criança e Consumo indicam que a publicidade velada em conteúdos digitais está crescendo, violando os direitos das crianças. Uma decisão recente do Tribunal Regional Federal determinou que o YouTube deve alertar sobre a proibição de merchandising direcionado ao público infantil, em resposta a denúncias de pais.
Para combater essa influência, é essencial que os pais dialoguem com os filhos sobre o conteúdo consumido e que haja maior transparência nas práticas de marketing. A regulação adequada e a responsabilidade dos influenciadores são fundamentais para proteger as crianças de estratégias de consumo manipulativas.
Outro dia, minha filha Júlia me pediu um Bobbie Goods. Nunca tinha ouvido falar disso. No dia seguinte, ela mostrou o Labubu. Não demorou muito e ela já queria uma nécessaire de skincare e uma garrafa “estética” que viu em um vídeo YouTube Kids.
Nada disso foi apresentado a ela por propaganda tradicional, não tinha anúncio, jingle ou comercial na TV. A origem eram os vídeos de influenciadores, produtores de conteúdos, “aparentemente ingênuos”, mas que, na prática, funcionam como publicidade disfarçada. Foi aí que me dei conta sobre como a publicidade infantil, apesar de proibida no Brasil, nunca foi embora. Ela só mudou de roupa e de canal.
A legislação brasileira, como o Código de Defesa do Consumidor e o Estatuto da Criança e do Adolescente (ECA), proíbe publicidade dirigida a crianças por considerá-la abusiva (os mais maduros certamente se lembram do “Compre Baton”). No entanto, basta abrir qualquer rede social, em especial o Youtube Kids, para perceber como essa regra é sistematicamente burlada. Vídeos de “unboxing”, reviews, modinhas e tendências aparecem sem qualquer sinalização de que há um produto sendo promovido, muitas vezes com crianças e adolescentes - isso quando não adultos infantilizados, travestidos de criança - usando, desejando ou ostentando esses itens como parte natural do conteúdo.
O grave é ver crianças consumindo isso como entretenimento, sem barreira crítica. O desejo passa a ser o que veem, mesmo sem necessidade real, sem ser apropriado para a idade, ou, pior, com custo muito elevado. Já não indicamos às crianças o que seria legal comprar. As colocamos em um prisma maior, o de pertencimento. Hoje estamos muito mais na linha do antigo “eu tenho, você não tem” do que “chora que a mamãe compra”.
No caso do Labubu, por exemplo, trata-se de “art toy” importado da marca Pop Mart, recomendado para maiores de 15 anos, viralizado entre crianças como brinquedo, apesar de ser, a princípio, um objeto de decoração. Bobbie Goods, que começou como marca de papelaria, virou item cult após influenciadoras mirins passarem a mostrar seus cadernos e estojos com centenas de canetas em vídeos fofinhos.
São produtos criando desejo não por serem úteis ou causarem ânsia de ter, mas por aparecem nas mãos de pessoas influentes, com a linguagem persuasiva e, frequentemente, com intenções comerciais por trás. É o novo marketing disfarçado de “dica”, “rotina” ou “diversão”.
Segundo o Programa Criança e Consumo, criado pelo Instituto Alana em 2006, a publicidade velada em conteúdos digitais está em ascensão e representa violação dos direitos das crianças. Em agosto de 2025, o Tribunal Regional Federal da 6ª Região determinou ao YouTube exibir avisos sobre a proibição de merchandising voltado a crianças, especialmente quando feito de forma disfarçada. A decisão foi motivada por denúncias de pais e entidades após verem seus filhos impactados por vídeos aparentemente inofensivos, só que incentivando o consumo de produtos com apelo emocional e simbólico.
Como mãe, me pergunto como proteger as crianças desse tipo de influência. A resposta não é simples. Conversar com os filhos e controlar os acessos à rede é essencial, além da necessidade de cobrar mais transparência e responsabilidade das plataformas. Influenciadores que produzem conteúdo para ou com crianças devem ser obrigados a sinalizar claramente quando há publicidade. As empresas não podem se esconder atrás de vídeos fofos para vender. E os pais precisam estar atentos aos conteúdos e às mensagens ocultas.
A infância virou alvo de uma nova forma de marketing, mais sutil e emocional e, justamente por isso, mais perigosa. Não se trata de demonizar a internet nem os influenciadores, mas de reconhecer a existência de uma estrutura de consumo por trás, muito bem pensada, alcançando nossas crianças cedo demais. Quando minha filha de sete anos me pede uma rotina de skincare, não posso ignorar que ela não inventou isso sozinha. Alguém ensinou e esse alguém, muitas vezes, está ganhando para isso.
Precisamos falar abertamente sobre esse tipo de conteúdo, pressionar por regulação adequada e ensinar nossas filhas e filhos a reconhecerem que nem o que está na tela é verdade, é para ela ou é apenas "diversão". Às vezes, é um comercial…só que muito bem disfarçado.
*Ligia Kallas é diretora de Marketing da Kallas Mídia OOH
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