O jogo do tigrinho é um perigo, inclusive para crianças e adolescentes
Thiago Godoy* Publicado em 13/10/2024, às 06h00
Ofertas de dinheiro fácil e ganhos rápidos sempre atraíram um grande número de pessoas. E a forma com que os jogos e apostas online se espalham rapidamente a cada dia nos prova isso. Porém, seus efeitos são tão nocivos à saúde - financeira e mental - que ganharam o status de epidemia.
O Banco Central divulgou recentemente uma análise sobre o mercado de jogos e apostas online no Brasil, mostrando que:
Em uma pesquisa realizada pelo Instituto Locomotiva, 37% dos entrevistados afirmaram que já tiraram dinheiro de outras despesas para apostar. Quanto à frequência, 20% disseram jogar pelo menos uma vez por semana, 17% mais de uma vez por semana e 8% alegam jogar todos os dias.
Nas classes D e E, os gastos com apostas consomem 1,38% do orçamento familiar. E muitas dessas famílias deixam de ir ao teatro ou ao cinema, já que 76% das despesas de lazer e cultura são destinadas ao jogo do tigrinho e às bets. Esses dados foram disponibilizados pela Strategy&, uma unidade de negócios de consultoria estratégica da PricewaterhouseCoopers.
Essa epidemia também atingiu em cheio os beneficiários do Bolsa Família. Só em agosto deste ano, 5 milhões de famílias que recebem o benefício gastaram 3 bilhões com apostas e jogos.
Para evitar que a situação se agrave, o governo federal tem estudado uma forma de proibir que dinheiro do Bolsa Família seja usado nessas plataformas.
O vício em jogos e apostas é resultado de uma combinação de fatores psicológicos, neurológicos e sociais. Um dos principais motivos é a ativação do sistema de recompensa no cérebro. Ao jogar ou apostar, o cérebro libera dopamina, um neurotransmissor responsável pela sensação de prazer. Com o tempo, o cérebro passa a associar essa atividade a algo bom, criando uma busca constante por essa sensação.
Além disso, muitos jogadores desenvolvem a ilusão de controle, acreditando que podem influenciar os resultados dos jogos, mesmo sabendo que dependem da sorte. Outro fator é o reforço intermitente, em que as recompensas ocorrem de forma imprevisível, isso mantém os jogadores engajados, pois a expectativa da vitória os motiva a continuar, mesmo que as perdas sejam mais frequentes que os ganhos.
O aspecto emocional também desempenha um papel importante. Muitas pessoas utilizam os jogos e apostas como uma forma de escapismo, uma maneira de fugir do estresse, da ansiedade, da depressão ou até do tédio. A adrenalina oferece uma distração temporária da realidade, mas isso pode levar a um ciclo vicioso, em que o jogador se torna emocionalmente dependente dessa fuga.
Os fatores sociais também influenciam o vício. A forma como eles são promovidos como atividades divertidas, inofensivas e que oferecem dinheiro “fácil” levam as pessoas a subestimarem os riscos. A competição, seja entre amigos ou com outros jogadores anônimos online, intensifica o desejo de ganhar ou recuperar perdas, criando uma pressão adicional para continuar jogando.
Quem já possui histórico de vícios, seja em substâncias ou comportamentos, também tende a ser mais suscetível ao desenvolvimento de uma dependência em jogos e apostas. Esses fatores, quando combinados, formam uma armadilha difícil de escapar, explicando por que tantas pessoas, mesmo conscientes dos danos causados, lutam para interromper o comportamento compulsivo por conta própria.
Toda epidemia deixa resultados devastadores, e essa não poderia ser diferente. Ela causa danos na saúde financeira, visto que 86% dos brasileiros que aderiram às apostas online estão endividados. Além disso, os jogadores gastam, em média, 20% do salário com essas plataformas todos os meses. Esses dados são do Instituto Locomotiva.
A saúde mental também é prejudicada nesse ciclo. O foco excessivo nas apostas causam aumento da ansiedade e depressão e queda no interesse por atividades cotidianas. Uma pesquisa realizada pela Confederação Nacional de Dirigentes Lojistas mostrou que 30% dos entrevistados declararam que os jogos e apostas prejudicaram suas vidas em algum ponto, 11% disseram ter uma queda na produtividade no trabalho.
Relacionar educação financeira com saúde mental é fundamental para alcançar o bem-estar completo. Por isso, Izabella Camargo e eu unimos nossos temas e criamos a palestra "Saúde Mental e Saúde Financeira: Um relacionamento para a vida inteira".
A ideia surgiu a partir de dois dados alarmantes: 1) no Brasil, problemas de saúde mental geram um prejuízo de 400 bilhões de reais por ano; 2) o desequilíbrio financeiro é a principal causa de estresse e ansiedade no mundo, segundo a OMS.
Agora, com a epidemia de jogos e apostas, nosso trabalho ganha uma nova perspectiva e atinge outro patamar. E a cada dia, vemos aumentar a importância de unir saúde financeira e saúde mental. É hora de inverter esse jogo e colocar as nossas finanças – e nossa vida – de volta no controle.
*Thiago Godoy é mestre pela FGV, onde estudou 400 famílias endividadas para entender as origens comportamentais e emocionais do desequilíbrio financeiro. Ele também é autor do best-seller “Emoções Financeiras”, palestrante duas vezes do TEDx e colunista no portal InfoMoney e na revista Vida Simples. Com 10 anos de experiência na área, foi Head da XP por 4 anos e liderou a Mobilização de Recursos e Relações Governamentais na Associação de Educação Financeira.