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É hora de acabar com a infância conectada

É urgente a proibição de celulares nas escolas pois seu uso interfere no aprendizado e também na sociabilização

Leticia Lyle* Publicado em 29/05/2024, às 06h00

A escola deve desempenhar um papel ativo, restringindo o uso de dispositivos móveis em sala de aula
A escola deve desempenhar um papel ativo, restringindo o uso de dispositivos móveis em sala de aula

Na última década, testemunhamos uma transformação radical na estrutura da infância - uma mudança não, necessariamente, marcada por avanços significativos na pedagogia ou na compreensão psicológica, mas pelo advento e pela dominação quase completa dos smartphones e das redes sociais na vida diária de nossos jovens. O artigo "Os Terríveis Custos de uma Infância Baseada em Celulares", baseado nas observações aprofundadas de Jonathan Haidt, destila um argumento poderoso e perturbador: transformamos nossas crianças em cobaias de um experimento global não regulamentado, cujos resultados estão começando a se revelar, e são assustadores.

Nos primeiros anos dos anos 2010, um aumento alarmante nos índices de depressão, ansiedade e suicídio entre adolescentes coincidiu curiosamente com a difusão dos smartphones e da ubiquidade das redes sociais. Este não é um fenômeno isolado ou regional; é uma tendência que se manifesta em várias culturas e sociedades em todo o mundo, sugerindo uma causa comum que transcende as fronteiras geográficas e socioeconômicas.

A infância, historicamente um período de exploração física e desenvolvimento social, está se tornando cada vez mais sedentária, isolada e mediada por telas. O tempo dedicado ao jogo ao ar livre, um componente crucial para o desenvolvimento físico e emocional, diminuiu drasticamente, substituído por horas em ambientes virtuais que prometem conexão, mas que, na realidade, exacerbam a solidão e a ansiedade. A capacidade de atenção está fragmentada, prejudicada por constantes notificações e a tentação de um entretenimento infinito, enquanto o sono e a atividade física sofrem, prejudicando tanto a saúde física quanto a mental.

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Mais alarmante é a mudança na própria natureza das interações sociais. O advento das redes sociais e dos smartphones não apenas alterou o meio pelo qual as amizades são mantidas, mas também transformou fundamentalmente como as identidades são formadas e percebidas. Adolescentes e jovens adultos relatam uma pressão quase irresistível para se engajarem nas redes sociais, muitas vezes à custa de seu bem-estar. Eles se veem presos em um ciclo vicioso de comparação social e busca de validação, conduzidos por algoritmos que pouco se importam com sua saúde mental.

Diante de evidências tão contundentes, as escolas não têm mais a opção de ficarem passivas. Precisamos reconhecer a gravidade do problema e tomar medidas concretas para proteger a próxima geração dos danos inadvertidos da infância mobile. Isso implica redefinir normas sociais em torno do uso de smartphones e redes sociais por crianças e adolescentes, promovendo atividades físicas e interações face a face sobre a conveniência e o apelo do digital. A escola, como centro de aprendizado e socialização, deve desempenhar um papel ativo, restringindo o uso de dispositivos móveis em sala de aula e incentivando o engajamento em atividades coletivas e no mundo real.

Embora o smartphone seja um grande aliado da nossa vida, pois nos permite registrar momentos, acessar informações e nos conectarmos, a presença constante dos smartphones pode desviar a atenção de atividades mais enriquecedoras

Temos, portanto, um papel novo e crucial para desempenhar como escola: inspirar o bom uso dos smartphones. Cultivar a importância do que está acontecendo na realidade, no aqui e agora, para que as nossas crianças e adolescentes não se percam em conversas e interações vazias de vida. 

Ao limitar o acesso aos smartphones, as escolas convidam os estudantes a se engajarem em atividades que promovem o desenvolvimento social e físico, como brincadeiras ao ar livre, esportes como queimada e voleibol, e até mesmo momentos de descanso e relaxamento durante os recreios. Eu vi isso acontecer na Camino School. Vi as quadras e espaços de convivência da escola ficarem, gradativamente, mais cheias e disputados nos intervalos, pelo simples fato de que os estudantes não podiam usar seus celulares. Comecei a ouvir muito mais histórias dos meus estudantes, que estão criando muito mais memórias juntos. 

Em consonância com tantas pesquisas e descobertas recentes, sinto que é meu dever fazer aqui um chamado à ação. Como mãe, educadora e gestora escolar, quero lembrá-los que, as escolas podem e devem ser espaços de aprendizagem, onde a infância e a adolescência são preservadas, onde o brincar, a interação com a natureza e as conexões humanas reais estão garantidas. 

*Leticia Lyle é pedagoga e mestre em Currículo e Educação Inclusiva pelo Teachers College da Columbia University. É cofundadora da Camino Education e da Cloe e diretora da Camino School. Tem vasta experiência no desenvolvimento e implementação de metodologias de ensino, currículo e preparação de professores para o século XXI.