Mariana Kotscho
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Todo pai por adoção sente alguma solidão?

Para o dia dos pais, uma reflexão do colunista Antoune Nakkhle, pai por adoção da Gabi

Antoune Nakkhle* Publicado em 09/08/2024, às 09h00

Gabi e o pai, Antoune
Gabi e o pai, Antoune

Recentemente, fiz um curso chamado “Racismo e Adoção”, realizado pelo  Acolher Grupo de Apoio à Adoção e à Convivência Familiar.

Este curso entrega excelente conteúdo e nos chama para reflexões profundas e necessárias sobre racismo e adoção. Despertou em mim diversos sentimentos com os quais eu ainda não havia entrado em contato.

Durante as oito aulas deste curso, me dei conta da solidão que sinto sendo pai branco por adoção de filha preta. Perguntei sobre essa solidão para uma mãe por adoção no curso e a resposta foi: sim, também sinto solidão. E pouco se fala sobre isso entre os pais e mães por adoção.

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Não dá para conversar sobre paternidade e solidão com pais que tiveram filhos biológicos? Dá, mas o papo não avança. Geralmente chega o momento em que a conversa empaca, a maior parte deles sempre lembra que “o seu filho é adotado”. Muita gente acredita que tudo começa na gestação biológica, com a semelhança física ou com conceitos como “ele puxou o avô” e por aí segue a viagem. É claro que a adoção pode trazer uma ou outra questão quanto à educação dos filhos que difere de outras quando falamos de filhos biológicos. Há diversos temas comuns à paternidade e à maternidade do dia a dia que independem de a criança ser ou não adotada – os pais, no entanto, sempre colocam a adoção na frente de tudo, como “com você deve ser diferente, pois ele é adotado...”. Me sinto em um deserto.

Mas de onde vem essa solidão por ser pai adotivo de filha preta?

Me sinto sozinho quando alguém, ao me ver com minha filha, diz:

— Que linda a sua filha!

— Sua mulher é negra?

— Você tem negros na família por parte de pai ou de mãe? 

— Sua filha é adotada?”

Logo que me tornei pai, recebia este tipo de comentário como carinho e pensava: Tudo bem, eles não disseram por mal.

Com o tempo, essa percepção começou a mudar e virou desconforto. Aos poucos, se transformou em irritação e raiva. Por que perguntar, por exemplo, se minha companheira é preta ou se minha filha é adotada? Que diferença faz isso?

Comecei a me posicionar contra essas falas porque passei a perceber o significado delas. São falas discriminatórias que sempre diminuem a criança preta e adotada. Coloca os pais por adoção em um lugar como se fossem “pais de segunda linha”. O racismo e o preconceito têm inúmeras camadas.

Eu também sinto solidão quando alguém, ao me ver com minha filha, pergunta:

— Quem de vocês não pôde ter filhos?

— Por que resolveram adotar?

— Foi escolha de vocês que ela fosse negra?

E quando conheciam minha filha, disparavam:

— Ela não é negra, ela é moreninha, parem de taxar a menina de preta porque ela não é! Não coloquem essa carga nela...

— Você sabe que vai ter netos pretos, né?

— Ela sabe que é adotada?

Amigos próximos e familiares já me disseram:

— Se você não queria passar por tudo isso, por que adotou uma criança negra? Não pensou nisso antes?

— Você quis ter filho de todo jeito, até resolveu adotar. Agora aguenta e não reclama! A gente pode ajudar, mas na vida, são vocês com o mundo. E com a filha preta que vocês escolheram.

Há também aqueles que tentam nos elevar aos céus:

— Eu acho um gesto lindo esse que vocês estão querendo fazer, Deus está vendo. Mas vou ser sincera. Eu não faria. Não aguentaria as pessoas perguntando se minha filha é filha da empregada.

— Deus vai dar a vocês em dobro pelo bem que estão fazendo!  

— Eu acho lindo, mas não tenho coragem...e se virar mau elemento?

— Você não sabe o caráter dos pais biológicos.

Entende agora a solidão a que me refiro? Todas essas falas em um ponto ou outro nos mandam recados de que somos diferentes. Não posso falar por outros pais, falo por mim. Tudo isso faz com que eu me sinta afastado dos pais biológicos. Não sei se estou conseguindo me explicar. Adoção não é vista como algo positivo e não é considerada paternidade de verdade.

Além disso, as falas machistas, sempre presentes, também aparecem:

— Nossa, mas como ela ficou linda! Mais linda ainda de trança.

— Ela já tem namorado? Essa menina vai dar trabalho, hein!

— Quem diria, aquela bebezinha negrinha que você adotou virou um mulherão!

Quando era jovem, não me dava conta da potência preconceituosa dessas falas e, muitas vezes, era eu quem proferia esses falsos elogios.

Vamos em frente

Se adotar um filho preto fosse a desgraça que a sociedade insiste em nos fazer acreditar, não veríamos tantas famílias realizadas com filhos vindos por adoção.

Precisamos interferir nesse processo histórico preconceituoso sendo francos, reagindo a essas falas e atitudes racistas relativas aos nossos filhos e à adoção. Às vezes isso pode significar estremecer relações com pessoas que sempre amamos e isso faz parte, não é problema.

Acima de tudo, a adoção é apenas mais um jeito de um filho, um pai e uma mãe passarem a existir, independente do formato familiar. Pena que pouca gente saiba disso.

Somos apenas pais e mães de filhos pretos vindos por adoção.

Proponho um combinado:

Vamos parar de discriminar a adoção e os pais, como se eles fossem de segunda linha;

Vamos parar de discriminar as crianças adotadas e pretas; vamos enfrentar o racismo. Para isso, temos que ser antirracistas na atitude; vamos parar de objetificar as meninas, principalmente as pretas.

Talvez assim eu me sinta menos só. Eu e todos os outros pais brancos de filhos pretos por adoção. Quem sabe aí o deserto que sempre aparece na minha frente vire uma miragem.

*Antoune Nakkhle é jornalista, assessor de comunicação e imagem e pai da Gabriela, de 20 anos. Um pai branco de filha preta.

Se quiser falar com o autor: paibrancofilhapreta@gmail.com

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