Entenda como a Política Nacional de Cuidados busca valorizar o trabalho que não se paga
Laura Hirata* Publicado em 16/09/2025, às 06h00
A Política Nacional de Cuidados surgiu do reconhecimento de que o trabalho do cuidado é fundamental, muitas vezes não remunerado (ou sub-remunerado) e realizado em condições inadequadas. O trabalho não remunerado do cuidado foi avaliado em 9% do PIB mundial ou US$11 trilhões pela Organização Internacional do Trabalho - OIT.
A norma traz conceitos, objetivos, princípios e diretrizes sobre o tema, buscando promover seu reconhecimento, redução e redistribuição. Porém, ela é incipiente, visto que ainda depende de um plano intersetorial e de diversas medidas para sua concreta implementação — que não se sabe se, como e quando acontecerão.
Um dos dispositivos da Política é “promover o trabalho decente para as trabalhadoras e os trabalhadores remunerados do cuidado, de maneira a enfrentar a precarização e a exploração do trabalho”. Fazendo uma interpretação inversa, é possível inferir que muitos cuidadores operam sem direitos trabalhistas, proteção social e em condições humilhantes de trabalho. E, se essas são as características para quem exerce essa atividade de forma remunerada, o que dizer sobre a situação de quem a exerce sem receber um centavo?
Nesse caso, a realidade — admitida pela própria lei — é que o trabalho não remunerado do cuidado acaba sendo “realizado primordialmente pelas mulheres”. No Brasil, em 2022, as mulheres empregaram 21h36min semanais de trabalho doméstico e de cuidado, contra 11h48 dos homens, segundo o Instituto de Pesquisa Econômica Avançada - IPEA.
No entanto, não há necessidade de uma agenda coletiva ou histérica — ironicamente falando — para começar a aplicar a Política, em especial, entre casais. A seguir, encontra-se um exercício matemático com a divisão de despesas e trabalhos. A ideia é ilustrá-los e minimamente precificá-los.
Assumindo um casal que viva em um cenário de igualdade salarial, começamos com a seguinte equação: cônjuge H (homem) ganha R$200, M (mulher) também e a despesa total é de R$100. Fazendo uma divisão simples, H e M deveriam contribuir com R$50, sobrando R$150 para cada.
Contudo, saindo da ficção, em 2024, mulheres receberam apenas 79,1% do que os homens receberam, sendo que essa diferença se acentuou para 73,2% em cargos mais altos, segundo o Ministério do Trabalho e Emprego. Um cenário refletindo essa desigualdade seria: despesa de R$100, cônjuge H ganhando R$300 e M R$200. Aplicando 20% sobre a remuneração de cada um, H deveria contribuir com R$60, enquanto M com R$40 (nesse caso, sobrariam R$240 para H e R$160 para M).
Migrando para o trabalho visível não remunerado do cuidado (que vai além do doméstico, pois envolve tarefas externas, como fazer compras no supermercado, prestar assistência a familiares etc.), primordialmente executado pelas mulheres, um novo ajuste deveria ser feito — considerando 10% do salário de M—, de modo que H passaria a contribuir com R$80 e M com R$20 (sobrando R$220 para H e R$180 para M).
Se o trabalho visível do cuidado já é praticamente invisível, o que dizer do trabalho mental? De maneira simplificada, existe um trabalho intelectual de planejar, organizar e tomar decisões relativas ao lar e à família (mesmo sem a presença de filhos). Tangenciando essas funções, ainda encontramos o menkeeping — trabalho feito pelas mulheres de suporte às necessidades emocionais e sociais dos homens, apresentado em matéria da revista Forbes, em 2024 —; bem como o kinkeeping — trabalho constante de manter e fortalecer os laços familiares, majoritariamente feito pelas mulheres, didaticamente explicado pelo New York Times, em 2024. Endereçando mais esse tópico, passaríamos a R$100 para H e R$0 para M (sobrando R$200 para H e R$200 para M).
Seguindo, o nascimento de um filho acentua ainda mais a disparidade de gênero no mercado de trabalho (conforme ensaio publicado no jornal Nexo em 2024), da mesma forma que multiplica o trabalho do cuidado. Segundo artigo publicado pela Forbes em 2024, nos EUA, somente a carga mental parental foi estimada US$3,8 trilhões. Meramente para fins ilustrativos, pensando em saúde, a representatividade das mulheres ocorre em peso nas consultas médicas, hospitais, UTI neonatal etc. — o que consome tempo, cuidado e preocupação. E isso não computa o trabalho reprodutivo (gravidez, parto, amamentação etc.).
Assim, a sugestão seria dobrar os valores do trabalho do cuidado e da carga mental e inserir a carga (ou desgaste) emocional: passaríamos para R$160 para H e -R$60 para M (sobrando R$140 para H e R$260 para M). A balança inverteu! O homem passaria a pagar para a mulher! Considerando que a quantidade de filhos também deveria ser uma variável, a desproporção seria ainda mais gritante.
Há, ainda, um último item que escapa à essa dinâmica pura de casais, mas que precisa ganhar voz: a epidemia de pais ausentes! Em 2024, segundo a Associação Nacional dos Registradores, 6,7% foi o percentual de certidões de nascimento emitidas sem o nome do genitor. Note que esse número não abrange as chamadas crianças “órfãs de pai vivo” ou pouco assistidas. Buscando ao menos a responsabilização por gênero, parece adequado criar um “imposto pai ausente” que incida sobre o salário exclusivamente dos homens, destinado ao cuidado das crianças afetadas por essas circunstâncias.
O exercício acima é meramente reflexivo, não pode ser generalizado e abrange qualquer pessoa que se enquadre nas características aqui descritas (independentemente de gênero biológico ou do tipo de relacionamento). Ele “corrige” a desigualdade de modo pouco justo porque parte de salários desiguais e pressupõe que a igualdade financeira seja atingida somente com a sobrecarga feminina, possibilitando que o homem continue ganhando mais e desempenhando a performance da inutilidade. Além disso, R$20 é um número meramente recreativo, longe de ser adequado. Embora o resultado final chegue a uma inversão, soa subestimado.
Esse raciocínio é sobre dar um ponto de partida para que trabalhos e responsabilidades sejam reconhecidos, precificados, debatidos e, principalmente, redistribuídos. Cabe a cada casal levantar suas variáveis e individualizar as situações. Condição social, raça, orientação sexual e outros fatores também podem ser contemplados nessa equação.
Não conversar sobre a divisão e o valor das tarefas pode acabar representando uma concordância tácita com o acúmulo de funções não remuneradas e, consequentemente, com a perpetuação da desresponsabilização por quem não as executa. A ideia não é que tudo seja sobre dinheiro, mas, sabidamente, quando se atinge o bolso, as mudanças ocorrem de forma mais rápida.
*Laura Hirata é graduada pela Faculdade de Direito da Universidade de São Paulo. Trabalhou em grandes escritórios de advocacia e foi diretora jurídica de empresas listadas no Brasil e nos EUA
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