Os advogados Douglas Ribas Jr. e Carlos Alberto de Santana explicam a multiparentalidade e suas consequências jurídicas.
Carlos Alberto Santana e Douglas Ribas Jr.* Publicado em 11/08/2022, às 08h57
É inegável que de tempos em tempos nossa sociedade passa por mudanças. Trata-se da transformação social, fenômeno que contempla alterações nas instituições sociais, nos comportamentos dos entes sociais e nas suas relações.
Quando se trata de questões envolvendo o Direito de Família, infelizmente os avanços acontecem de forma lenta, dependendo da evolução legislativa e jurisprudencial. Tal não ocorreu de forma diferente com o tema desse artigo: a multiparentalidade.
Em razão dos considerados “novos modelos familiares”, não raramente algumas famílias são compostas por quem possui um ou mais filhos de relacionamentos anteriores.
Por conta desses novos cenários, o Poder Judiciário já se deparou com situações nas quais, por exemplo: i) reconheceu o direito de três irmãos terem duas mães, isto é, a mãe biológica e a socioafetiva em seus registros de nascimento; ii) uma criança de cinco anos teve, na certidão de nascimento, o nome do pai biológico e do pai que a registrou, eis que esse último com ela convive desde o nascimento; e iii) reconheceu a multiparentalidade entre duas mães – que viviam em união estável e posteriormente se casaram – e o pai biológico, amigo de ambas.
Recentemente a mídia divulgou o caso de um trisal que decidiu ir à Justiça para registrar filhos com nomes de três pais, o que comprova que a formação da família moderna - não consanguínea - tem sua base na afetividade, nos princípios da dignidade da pessoa humana e da solidariedade.
Multiparentalidade é o termo utilizado para o reconhecimento jurídico da coexistência de mais de um vínculo materno ou paterno em relação ao mesmo indivíduo. Ou seja, o reconhecimento jurídico de que uma pessoa possui “dois pais” ou “duas mães”, permitindo que essa situação seja formalizada perante o registro civil, fazendo constar dos documentos de identificação essa dupla filiação, materna ou paterna.
Considerando a relevância do tema abordado e sua repercussão no contexto social do país, a questão foi definitivamente consolidada em nosso Ordenamento Jurídico com o julgamento, pelo Supremo Tribunal Federal, do tema 622 de repercussão geral, com Recurso Extraordinário (RE nº 898.060, de Santa Catarina, Relator Ministro Luiz Fux), sendo firmada a seguinte tese:
“A paternidade socioafetiva, declarada ou não em registro público, não impede o reconhecimento do vínculo de filiação concomitante baseado na origem biológica, com os efeitos jurídicos próprios”.
A partir desse julgamento, portanto, foi fixada tese aplicável a todo ordenamento jurídico nacional, segundo a qual a paternidade socioafetiva declarada ou não em registro não impede o reconhecimento do vínculo de filiação concomitante, baseada na origem biológica, com os efeitos jurídicos próprios.
O Conselho Nacional de Justiça editou o Provimento nº 63 que sofreu alterações pelo Provimento nº 83, de agosto de 2019, do mesmo CNJ, possibilitando o reconhecimento da multiparentalidade no Cartório de Registro Civil, exigindo-se sempre a participação do Ministério Público no procedimento.
Atualmente se admite, extrajudicialmente (sem a necessidade de acionar o Poder Judiciário) que o reconhecimento voluntário da paternidade ou da maternidade socioafetiva das pessoas acima de 12 anos seja autorizado perante os oficiais de registro civil das pessoas naturais. Se o filho for menor de 18 anos, o reconhecimento da paternidade ou maternidade socioafetiva exigirá o seu consentimento. Para os menores de 12 anos, o reconhecimento deve ser requerido judicialmente.
De acordo com o regramento atual, a paternidade ou a maternidade socioafetiva deve ser estável e necessita estar exteriorizada socialmente, cabendo ao registrador atestar a existência do vínculo afetivo mediante apuração objetiva por intermédio da verificação de elementos concretos.
Procurando facilitar a comprovação da afetividade, o novo regramento aceita, por exemplo, documentos tais como:
Verificada a ausência de tal documentação, o registro não será negado, desde que justificada a impossibilidade de apresentação dos documentos, contudo, o registrador deverá atestar como apurou o vínculo socioafetivo.
O reconhecimento em cartório fica limitado a apenas um pai ou mãe. Para além dos casos dos menores de 12 anos mencionados acima, em se tratando de inclusão de mais um ascendente, um segundo genitor baseado na afetividade, será necessário ingressar com ação judicial.
Importante observar que esse reconhecimento jurídico traz todas as implicações inerentes à filiação, com deveres e direitos recíprocos, sem qualquer hierarquia entre os pais ou mães. Como consequência, gera o dever legal de solidariedade familiar, trazendo a obrigação de prestar alimentos, o dever à guarda e proteção do filho, além de garantir o direito fundamental à herança. Ou seja, “nos casos de reconhecimento de multiparentalidade paterna ou materna, o filho terá direito à participação na herança de todos os ascendentes reconhecidos” (Enunciado nº 632 do Conselho da Justiça Federal).
Se o seu caso se enquadrar nessa situação e você desejar o reconhecimento jurídico da multiparentalidade, importante que consulte profissional da sua confiança com experiência nessa matéria, a fim de que as providências necessárias para a solução jurídica sejam adotadas. Tudo em nome do amor!
*Dr.Douglas Ribas Jr. é graduado pela Pontifícia Universidade Católica de São Paulo (PUC-SP) em 1993 e pós-graduado em Direito Processual Civil pela mesma instituição. Cursou Program of Instruction for Lawyers na University of California - Davis. Reconhecido entre os mais admirados advogados de 2015 e 2019 pelo anuário Análise Advocacia, atua em contencioso e consultoria, especialmente nas áreas do Direito Civil, Consumidor, Comercial, Contratos, Imobiliário, Trabalho e Societário. Instagram: @douglas_ribas_advogados
*Carlos Alberto Santana é consultor da área cível do escritório Douglas Ribas Advogados Associados. Doutor e Mestre em Direito pela Faculdade Autônoma de Direito de São Paulo - FADISP/SP. Pós-graduado em Direito Processual Civil e em Direito Contratual pela Pontifícia Universidade Católica de São Paulo - PUC/SP. É Professor de Direito Processual Civil e de Direito Civil. Especialista em Direito Imobiliário e em Sistema Financeiro da Habitação. Escreve nas áreas de Direito Processual Civil e de Direito de Família. Advogado atuante nas áreas do Direito Público e do Direito Privado.