Como as mulheres se desconectaram do poder ancestral do ato de dar à luz?
Fernanda Carvalho* Publicado em 02/08/2022, às 08h34
Em que ponto da história da humanidade as mulheres desaprenderam a parir? A cultura da cesariana se impôs de uma forma que hoje ter um filho pelas vias naturais passou a ser um acontecimento excepcional. Lembro da surpresa de minha mãe quando decidi pelo parto normal. Mas para que isso? Hoje em dia ninguém precisa sentir dor, filha. Ela, que teve os três filhos de partos normais, já estava catequisada pela “modernidade” dos partos cirúrgicos, “escolhidos” por todas as mulheres das gerações seguintes da nossa família.
Será mesmo uma escolha? É uma das perguntas que lanço com o livro A Luz da Maternidade, Relatos de Parto Sem Dor conduzidos por Gerson de Barros Mascarenhas. O livro, recém publicado pela Editora Inverso, é uma homenagem póstuma ao obstetra baiano que não me atendeu em seu consultório, não fez o parto dos meus filhos, mas marcou definitivamente a chegada de Lucca e João Pedro ao mundo. Tive filhos de olhos abertos, com sensibilidade e plenitude. E acreditem: sem anestesia nem dor!
Tive a felicidade de conhecê-lo aos 90 anos. Eu tinha apenas 25 e o desejo de viver a gestação com toda intensidade. Foi um lindo encontro de almas e de muito aprendizado. A gestação é uma fase de tantas mudanças, fisiológicas - para criar espaço no nosso corpo e gerar outra vida - hormonais, emocionais... Curiosa e questionadora, queria entender tudo. E ele tinha tempo e respostas para muito mais. Que privilégio ter convivido com Dr. Gerson.
Meus dois filhos nasceram de partos rápidos, sem gritos e sofrimento. Do jeitinho que acreditei desde o primeiro encontro com ele, a despeito das piadas e palavras de desestímulo que esbarrava ao cruzar a porta da sua casa para o encarar o mundo.
Pautado no preparo das gestantes, o método soviético psicoprofilático de parto sem dor, defendido na Bahia pela única voz de Dr. Gerson, era simples, de baixo investimento e eficaz. Munidas de informações em um momento de tantas mudanças e inquietações, as gestantes aprendiam exercícios de respiração, técnicas de relaxamento e – o mais importante – a confiar em seu corpo.
Para quebrar o círculo vicioso do MEDO-TENSÃO-DOR, eram nutridas de relatos positivos e informações que as faziam compreender cada etapa do parto para atuar ativamente no processo de nascimento, descobrindo o poder que nasce das suas entranhas. Conhecimento é poder, e no parto não é diferente.
“A natureza não dá saltos”, era uma de suas máximas proferidas em latim. Tudo na vida e nosso corpo é processual, acontece aos poucos. E temos a opção de nos preparar, buscar conhecimento para agir a favor de cada momento. O que ele me ensinou levo para a vida. Foi assim na minha gestação, dos filhos e do livro.
A promessa de escrevê-lo nasceu de uma “dívida” de gratidão depois da sensação de plenitude que vivenciei no primeiro parto. Publiquei matérias de página inteira no jornal que trabalhava na época, produzi entrevistas em emissoras de TVs locais, mas sabia que Dr. Gerson e o método mereciam mais. Saí da maternidade com o filho no colo e responsabilidades dilatadas... O desafio de continuar dando conta dos cuidados com o bebê, dois empregos e dezenas de boletos a pagar.
Não consegui cumprir minha palavra com ele ainda em vida. O projeto abortado pesava em mim, mesmo quando parecia esquecido até o dia que decidi cumprir minha promessa. Dr. Gerson já não está mais no plano físico, mas me ajudou também a nascer escritora. Com o mesmo amor de um filho, esse livro foi concebido ao longo de 18 anos. É fruto de uma longa e amorosa gestação. Nasceu da consciência de que não podia guardar um conhecimento tão valioso só comigo. Parto da concepção de que nunca é demais enfatizar a importância de um legado para as gerações futuras.
Quando tive o privilégio de conhecê-lo não podia imaginar a grandiosidade daquela história de vida que se desnudou para mim nas quase cem entrevistas que realizei ao longo da pesquisa para elaboração do projeto. A biografia de Dr. Gerson é o fio condutor da narrativa, costurada por relatos de mulheres atendidas por ele – de distintas gerações e classes sociais- que endossam o coro de que o parto natural e sem dor é mesmo possível. Trago essa mensagem de alento sem pretensão alguma de romantizar a maternidade. Quem é mãe sabe que vivemos um parto diário. É um solta, contrai, aperta, segura, que nos exige uma reengenharia das nossas emoções o tempo inteiro.
Faz-se necessária uma ressignificação do nascimento, marco zero da nossa existência. A forma como que somos gestados desde o útero até o momento que chegamos a este mundo têm grande impacto ao longo da vida. Gravidez não é doença; o parto é um ato fisiológico. E as mulheres devem ficar atentas para evitar cirurgias desnecessárias. A Organização Mundial de Saúde (OMS) preconiza que o total de partos cesáreos em relação ao número total de partos realizados em um serviço de saúde seja de 15%.
No Brasil, as estatísticas são alarmantes. Somos o segundo país no mundo em número de cesáreas, com 55% do total de partos realizados, atrás apenas da República Dominicana (58,1%). Nas maternidades particulares, esse índice supera 80%.
Aqui, cesariana se tornou regra, mas o parto natural não precisa ser sinônimo de sofrimento. Até por volta dos anos 1970, os nascimentos costumavam ser feitos em casa. Os bebês nasciam amparados pela sabedoria milenar das parteiras. A tendência de tornar a cesariana uma unanimidade brasileira se concretizou no país a partir dos anos 1980, quando os avanços científicos permitiram que a cirurgia, feita em seus primórdios para salvar os bebês quando as mães não tinham chance de sobreviver, se tornaram seguras e – teoricamente - indolores. A cesariana se tornou uma salvação para mulheres que temiam as dores de parto. O nascimento se tornou um ato médico.
No parto natural, a mulher é a protagonista. Parteiras, doulas, enfermeiras-obstétricas e médicos devem ter papel de coadjuvantes nos nascimentos. Assim aprendi com Dr. Gerson, um obstetra sensível que empoderava mulheres e humanizava o nascimento muito antes destes termos virarem moda. O método que ele defendeu por toda a vida não vingou, não teve seguidores. Mas suas premissas são atuais e necessárias neste momento em que estamos vendo tantos casos de violência obstétrica, desrespeito às escolhas da mulher. É um legado que não diz respeito somente à classe médica, gestantes ou quem quer ser mãe.
É um livro que deve ser lido por todos. Nas entrelinhas de narrativas de nascimento, brotam reflexões necessárias sobre feminismo, sobre escolhas. E por falar em escolhas, compartilho outra máxima que aprendi com Dr. Gerson. “A escolha do parto não deveria caber nem à mulher muito menos ao obstetra. É o próprio trabalho de parto que vai sinalizar o que precisa ser feito. Quando necessária, a cesariana é um excelente recurso. Salva vidas!”, pregava incansavelmente.
O livro A Luz da Maternidade não é uma bandeira “anti-cesárea”. É, sim, um convite para uma necessária reflexão sobre as vantagens do parto natural que oferece menores riscos para a mãe e o bebê. A possibilidade de gestar nos coloca mais próximas do criador. Cada parto é um milagre da vida.
Existe uma mística que ampara o parir... Abre-se um portal de autoconhecimento e renascimento. Existe a nossa ancestralidade, o nosso instinto, o que o nosso corpo revela para além das informações. O nascimento é um momento de renascimento. E não só do bebê, mas também da mãe, do homem, da família que nasce ou se ressignifica a cada chegada de um novo membro.
É triste ver que, o que deveria ser natural, hoje é a exceção. As mulheres que desejam partos normais têm que lutar muito para vencer a resistência cultural, do sistema, da família, dos amigos, da classe médica. E o mais preocupante é que essa pressão pela cesariana nem sempre é colocada de forma explícita. Por isso, muitas mulheres que querem parto natural acabam não conseguindo.
As que resistem têm conquistado partos naturais até mesmo depois de traumáticas e desnecessárias cesarianas. Na frieza do bisturi, a mulher anestesiada não sente a grandeza do ato de dar à luz. Parir é um ato de coragem e de muito amor. Parir sem dor não é o mais importante. O essencial é viver esse momento único do nascimento com alguém que olhe nos olhos, toque na alma e ajude a mulher a acreditar no seu corpo, no poder na natureza humana. Filho traz medo e incertezas, mas também propósito.
*Fernanda Carvalho, jornalista e escritora autora do livro A Luz da Maternidade, Relatos de Parto Sem Dor conduzidos por Gerson de Barros Mascarenhas.