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Tabelamento de aluguel: uma solução para as grandes cidades

Um artigo de Vladimir Safatle sobre o uso do tabelamento de aluguel

Vladimir Safatle* Publicado em 03/10/2022, às 06h00

Essa discussão é importante para superar os desafios das cidades modernas
Essa discussão é importante para superar os desafios das cidades modernas

Tendo em vista a dimensão do problema da moradia nos grandes centros urbanos, a questão do tabelamento de aluguéis pode ter a importância que um dia teve o direito trabalhista ao salário-mínimo. No Brasil, a força de movimentos sociais que estão na luta pela moradia digna para a população, como o MTST, confirma a urgência do problema. Por outro lado, ainda são modestas as iniciativas institucionais para frear a crescente especulação imobiliária urbana, uma das principais fontes de acumulação de capital, não só no Brasil.

Exemplo recente: em janeiro de 2020, a prefeitura de Berlim aprovou o Mietendeckel (controle ou limite de aluguel). Foi o resultado da ação de movimentos populares por moradia para limitar o preço dos aluguéis em uma cidade na qual 3/4 da população mora em imóveis alugados. A lei impedia proprietários de apartamentos construídos antes de 2014 de cobrar um valor maior ao que havia sido acordado em junho de 2019. Estabelecia também que qualquer aluguel que estivesse 20% acima dos níveis aceitáveis, dependendo da localidade e do tipo de imóvel, precisaria ser reduzido.

Em abril de 2021, a corte constitucional alemã declarou que o Mietendeckel em Berlim era inconstitucional. A decisão da corte provocou revolta na população da cidade. Desde então tem crescido o movimento de expropriação e remunicipalização de várias unidades habitacionais públicas na cidade que tinham sido privatizadas.

A reação mais relevante até agora foi a da Deutsche Wohnen & Co. enteignen que propôs que a prefeitura usasse uma disposição constitucional para adquirir o imóvel de qualquer proprietário com mais de 3000 apartamentos (sim, 3000 apartamentos!). Os defensores do enteignen dizem que ao municipalizar tais apartamentos, haveria melhor controle dos preços de aluguel. O movimento coletou milhares de apoiadores para um referendo popular. Em setembro de 2021, foi feito o referendo e a proposta venceu por ampla margem: 59,1% dos eleitores disseram "Sim" para a expropriação de empresas privadas de moradia (com uso de recursos do orçamento da prefeitura).

A atual prefeita da cidade, Franziska Giffey, se recusa a implementar a decisão popular. Em vez disso, a prefeita criou uma “comissão de especialistas” para examinar a proposta: os mesmos especialistas que já havia declarado que a expropriação seria "inconstitucional" para impedir o aumento do aluguel (não chega a surpreender que os mesmos especialistas, nunca parecem ter problemas com desapropriações para construção de rodovias, por exemplo). De todo modo, o Mietendeckel pode até mesmo voltar, pois o que a suprema corte alemã decidiu diz a respeito à jurisdição para o controle do aluguel (se o estado de Berlim ou o governo federal) e não sobre a legalidade do Mietendeckel em si. A disputa não acabou.

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Opositores do tabelamento de aluguéis reciclam velhos argumentos: que qualquer restrição à rentabilidade dos imóveis forçaria os proprietários a abandonarem o negócio ou que limitaria a oferta de moradia; que os custos de manutenção do imóvel diminuiriam, prejudicando os inquilinos; que a regulamentação seria uma intervenção ineficiente do Estado no funcionamento “natural” do mercado imobiliário. São argumentos que ignoram os problemas que decorrem de uma ausência de controle dos preços dos aluguéis.

Em um estudo sobre a política habitacional em Nova York, Oksana Mironova aponta que embora a regulamentação do aluguel não seja perfeita, ela "controla o grave desequilíbrio de poder entre inquilinos e proprietários" e "age como um contrapeso à gentrificação e como um obstáculo contra a remoção forçada e a falta de moradia". Quando a regulamentação de aluguéis é eliminada, o resultado não é o paraíso do mercado livre da acessibilidade econômica eficiente, mas a desapropriação, o aumento dos aluguéis e a insegurança social. Só nos EUA, em 2019, existiam aproximadamente 200 cidades com algum tipo de regulamentação de aluguel. A maioria delas está em três estados - Nova York, Nova Jersey e Califórnia.

Outro estudo recente sobre controle de aluguel, realizado por Diamond McQuade e Qian, utilizou dados do mercado imobiliário de São Francisco para analisar o efeito da mudança nas regras de controle de aluguel em meados dos anos 90. As principais conclusões são, em primeiro lugar, que a regulamentação do aluguel é eficaz, sim, na limitação de aumentos de aluguel; que não há evidências de que a regulamentação de aluguéis reduza a disponibilidade de moradias; e que o controle desempenha papel importante na preservação de características do bairro, impedindo a gentrificação e os problemas correlatos de transporte e segurança.

É imprescindível trazermos essa discussão para enfrentarmos os desafios de moradia nas grandes cidades brasileiras. Em nossa campanha, propomos o tabelamento dos preços de aluguéis e a limitação da posse de imóveis a 5 por cidade, a fim de evitar não apenas a especulação imobiliária e impedir o processo de transformação gradual do direito à moradia em mercadoria, mas também evitar os diversos problemas de infraestrutura urbana provocados pela alta concentração imobiliária.

*Vladimir Safatle é professor universitário.