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Bebê Reborn: loucura?

Analisando o impacto dos bebês reborn na saúde mental e nas relações interpessoais

Milena Brentan* Publicado em 16/06/2025, às 06h00

Há tratamentos sérios que utilizam bonecas - pexels
Há tratamentos sérios que utilizam bonecas - pexels

Quando eu tinha vinte anos, uma amiga me contou que a mãe dela brincava de bonecas. Ela cuidava, vestia, penteava. E dizia abertamente: “tenho bonecas hoje porque nunca tive bonecas quando era criança e sempre quis uma”. Aquela mulher adulta, mãe e independente deu atenção para aquilo que um dia lhe faltou. Chamo isso de “demanda interna", algo que todos nós temos (cada um do seu jeito e com seus aspectos), algo que falta dentro da gente e segue pedindo atenção, mesmo sem sabermos explicar o que é. Então não foi com muito espanto que comecei a ver inúmeros memes de bebê reborn.  

Mas depois de um olhar despretensioso, percebi que o "trend da internet” vai muito além do meme e da busca por likes. Ele esbarra em algo que é central para quem trabalha com desenvolvimento humano: tudo que a gente faz, faz para dar conta de algo, para dar vasão a alguma demanda interna nossa. Ninguém age sem motivo. Seja para chamar atenção, para pertencer, para reparar uma dor ou para construir um vínculo que não foi possível viver na realidade. A psicanálise explica isso: nosso comportamento é uma tentativa de organizar a falta. A falta de afeto, de reconhecimento, de pertencimento. E nem sempre isso se dá de forma consciente ou muito menos “racional”.

Mas voltando aos bebês reborn, eles não são novidade. Eles são usados em contextos diversos há anos: em hospitais, para simulação de partos. Em escolas, como ferramenta pedagógica. Em treinamentos de primeiros cuidados. No trabalho com idosos com Alzheimer, como forma de resgate afetivo. O que há em comum entre estes casos é que em todos eles o boneco é um meio. Ele ajuda a construir algo, a expressar algo. É um recurso simbólico mesmo e, quando usado com esse propósito, tem função terapêutica, educativa, afetiva.

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O problema aparece quando ele deixa de ser meio e vira fim. Em outras palavras, quando o vínculo com o boneco se torna o centro da vida emocional de alguém, quando há confusão entre fantasia e realidade. Aí sim estamos diante de uma possível demanda psíquica mais profunda. 

Vamos ser razoáveis: algumas pessoas com o bebê reborn podem mesmo estar lidando com perdas reais. Luto, infertilidade, solidão, rupturas afetivas ou até mesmo o fato de nunca ter sido possível brincar de boneca quando criança (como o caso da minha amiga). Em todos estes casos o reborn pode se tornar um símbolo de reencontro com o que não foi possível viver. 

Agora, tem também o outro lado: o da internet, da performance,  da era dos likes e dos conteúdos. Tem gente encenando vídeos dizendo que não foi trabalhar porque o “bebê” estava doente. Não tenho detalhes dos casos, mas a grande maioria mais me parece uma brincadeira do que um transtorno psíquico. E está tudo bem a gente rir, desde que saiba diferenciar o exagero da dor real.

É nesse contexto que surge o projeto de lei. O PL 5357/2025 propõe a criação de um programa de saúde mental para essas pessoas. Pode parecer absurdo, mas é um sinal de que há algo ali que merece ser escutado. Frantz Fanon já dizia que saúde mental não se entende fora do contexto social.  Quando alguém projeta afeto, cuidado ou reconstrução de vínculo em um boneco hiper-realista, não cabe aos psicólogos e psiquiatras apenas diagnosticar, mas sobretudo escutar o que essa escolha está tentando expressar.

Existe ainda uma camada simbólica que me chama muita atenção…. Cuidar de um bebê reborn é, de certa forma, mais simples. Ele não chora de madrugada. Não tem febre. Não exige atenção fora do horário. Você cuida dele com o que você quer dar, não com o que ele precisa. É um tipo de cuidado que permanece sob controle. Um filho real, por outro lado, confronta, demanda, existe como pessoa separada daquele que cuida. Quando esse vínculo simbólico com bebê reborn é levado ao extremo, o que temos não é uma relação, mas um espelhamento, no qual o outro (o boneco no caso) existe apenas para reafirmar o que “eu quero”, o que “eu preciso”. E aí, o cuidado deixa de ser um encontro e vira monólogo. Em outras palavras, em níveis extremos, o vínculo com o reborn pode ser mais espelho do que uma relação propriamente dita.

Talvez o que mais me impressione nesse fenômeno não seja apenas o bebê reborn em si, mas tudo o que ele simboliza. Porque no fundo, ele é só um espelho de como, muitas vezes, a gente tenta construir vínculos sob controle. Relações que não nos confrontam, que não exigem mais do que estamos dispostos a dar. E isso não vale só para a vida íntima, vale também para o trabalho.

Tem muita gente liderando como se o time fosse um reborn: sem autonomia, sem frustração, sem contradição. Onde escutar o outro é desconfortável demais. Mas a verdade é que equipes reais, como vínculos reais, são feitas de tensão, troca, limites e afeto. 

O reborn é a imagem simbólica de um cuidado que não quer ser desafiado. De uma relação que não quer ser atravessada. E quando a gente traz isso para o campo das lideranças, da cultura organizacional, dos times, fica evidente o quanto ainda há lideranças que preferem relações que obedeçam, não relações que cresçam.

Então, é loucura? Talvez sim. Mas talvez não. A pergunta certa na minha visão é “o que isso está tentando dizer?”. E talvez mais importante ainda do que falar dos outros, nós devêssemos nos perguntar porque nos mobilizamos tanto com esse trend. E onde, na nossa própria vida pessoal ou profissional, também temos escolhido a previsibilidade no lugar da relação real? 

*Milena Brentan é psicóloga e consultora especializada em desenvolvimento de lideranças e cultura organizacional. Com mais de 20 anos de experiência, liderou áreas de RH em empresas como Airbnb e GPA, e atuou como sócia-operadora da gestora de venture capital Vox Capital. Hoje, apoia executivos e startups a navegarem complexidades com mais clareza, autenticidade e resultados sustentáveis.