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Eu posso ser branco e pai de uma criança preta?

O colunista Antoune Nakkhle, pai de uma adolescente preta, traz uma reflexão sobre sua paternidade

Antoune Nakkhle* Publicado em 23/12/2024, às 06h00

As delícias e as dores da paternidade
As delícias e as dores da paternidade

Quando decidi ser pai, resolvi que eu queria ser o pai que meu pai não teve tempo de ser comigo. Ele morreu cedo, dormindo. Eu tinha 10 anos, ele 50. De repente, meu pai morreu dormindo. A partir daí, eu sempre me pegava pensando: como seria se ele estivesse aqui quando eu tirasse carteira de motorista? Será que me ensinaria antes dos 18 anos, nos estacionamentos da USP? Como seria se ele estivesse comigo na formatura da faculdade?  Será que seria uma relação legal, de cumplicidade? Seríamos amigos quando eu estivesse com 20 anos? O que ele acharia da minha namorada? Será que ele seria uma pessoa conservadora ou seria um homem à frente de seu tempo? Tantas perguntas e nada de respostas. A vida é como é.

O que era ser pai na minha cabeça de criança

Ainda garoto, na minha cabeça, quando eu crescesse, eu poderia ser pai do jeito que eu quisesse. Não faria diferença se meu filho fosse adotado ou biológico, branco, preto ou amarelo. Se eu via na rua várias crianças chamando adultos de pai ou mãe, então para mim não fazia diferença de que maneira eu seria pai. Eu queria é ser pai.

Com o tempo, percebi que alguns pais e mães tinham filhos que eram diferentes da maioria dos meus amigos ou vizinhos - criança ou adolescente pcd (como se diz atualmente quando uma pessoa tem alguma deficiência). Ou então criança gordinha, magra, loira, de olhos azuis, de cabelos ruivos, negras, crianças que usavam óculos, crianças surdas, orientais, tinha até criança que não falava a nossa língua. Mas todos chamavam seus pais e mães de pai ou de mãe. E todos esses adultos sempre se referiam aos seus filhos assim: filha ou filho.

Se era assim tão natural, então todo mundo poderia ser filho ou pai ou mãe, pensava eu.

gabi
Gabi pequena

Com o tempo, aprendi também que tem filho que não saiu da barriga da mãe, veio de outra mulher. Eu achava isso triste porque aprendi nos filmes ou novelas de TV que essas crianças eram abandonadas na rua ou no hospital e que suas mães eram más. A maior parte dessas crianças era preta. Depois, comecei a perceber que as pessoas olhavam diferente essas crianças nas festas, na escola, no supermercado, na vida. Minha cabeça deu um nó. Eu não entendia mais nada. Se era uma situação triste (como eu pensava que fosse sempre), então por que as pessoas olhavam desse jeito para essas crianças e também para os adultos? Não era para ser ao contrário?

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Fui conversar com a Dada, a empregada preta que trabalhava e morava na mossa casa – ela sempre me explicava melhor certas coisas que eu perguntava para meu pai e minha muito melhor do que eles quando perguntados. Eles respondiam tudo o que eu perguntava, mas de um jeito muito esquisito. Era estranho. Não parecia lógico.

Quem é Dada?

Não dá para continuar sem antes contar para você quem era a Dada. Ela chegou na casa dos meus pais para trabalhar e morar como empregada doméstica aos 23 anos, antes de minha irmã e eu nascermos. Naquela época, ela não andava de elevador porque tinha medo. Fazia contas como ninguém. Escrevia e lia muito pouco. Depois foi estudar no Mobral, o atual EJA. Brincava bastante com a gente, ajudava a minha mãe a nos criar e cozinhava como ninguém. Foi a melhor cozinheira que conheci até hoje. Jamais conhecerei outra igual.

Por tudo isso e muito mais, ela se tornou minha mãe também, era assim que eu sentia, principalmente após a morte do meu pai. Por isso eu sempre disse que ela é minha segunda mãe, apesar de hoje em dia essa expressão soar uma afirmação racista; quando garoto eu sentia assim em relação a ela. Até hoje Dada é muito presente na minha vida, embora já tenha falecido. Foi minha melhor e mais fiel amiga até o fim. Morou comigo por mais de 50 anos.

Voltando: eu estava dizendo que fui conversar com a Dada para ela me explicar a contradição de as pessoas olharem diferente para as crianças que eram adotadas e as que eram pretas também.

— Meu filho, a vida não é fácil. Quer dizer; a vida é fácil, mas as pessoas complicam a vida.

— Por que, Dada?

— Porque as pessoas gostam de sofrer.

— Não entendi nada.

— Senta aqui, meu filho. Todo mundo é igual. Mas todo mundo se acha diferente, especial. Principalmente quem é branco e rico, que ainda não tem ninguém velho e doente na família, que parece não ter problema, essas pessoas acham que são mais do que as outras, principalmente em relação às pessoas negras ou índias como eu (na época ela falava assim e todos nós também). Por isso que todos os brancos olham diferente na rua para quem não se parece com eles – seja pela cor ou por outras diferenças. É desumano olhar diferente uma criança que é cadeirante ou uma criança preta. Por que isso, se todo mundo vai para debaixo da terra depois que morrer?

— Ué, mas você é preta? Ou você é índia?

— Ih, aí danou para eu te explicar isso!

— Ah, não, agora explica, Dada, assim não vale, por favor...

— Tá, vou tentar. Meu pai é preto. Mas minha mãe é mais ou menos, mais clara do que ele. Então, cada um na minha família diz uma coisa. Um tio diz que meus avós eram indígenas; outros não sabem; mas todo mundo tem certeza de que a gente não é preto. É complicado porque aqui no prédio, por exemplo, eu tenho certeza de que eu sou preta.

— Como você percebe isso?

— Pelo jeito como as madames me olham quando eu entro no elevador de serviço. E como se não bastasse, eu sou preta, empregada e uso uniforme. E isso é só o começo, tem muito mais.

— Eu te amo, Dada, você é demais. Me dá um beijo?

— Eu também te amo. Só um beijo, não. Dou vários! Vem cá.

Esta e muitas outras conversas que sempre tive com minha segunda mãe faziam com que eu me sentisse livre para pensar e para agir, pois eu sabia que não estava fazendo nada de errado, eu só estava me indignando com essas contradições.  Sempre afirmava que eu poderia ser pai do jeito que quisesse. Estando casado ou solteiro. Filho biológico ou vindo por adoção. Eu me manifestava onde estivesse quando via alguma discriminação como as que mencionei acima. Era quando minha família dizia que eu “criava caso com as pessoas por bobagem na rua, na escola, na vida”.  Nessas horas eu só olhava para a Dada e ria.

Foi observando o cotidiano, e todos os racistas radicais que sempre fizeram parte da minha vida de menino branco (na família, na escola, no prédio onde eu vivia, em todos os lugares onde eu ia) e os enfrentando, dizendo não para eles, que tive certeza de que eu poderia, sim, apesar de branco, ser pai de uma criança negra, por exemplo, se assim eu decidisse um dia quando fosse adulto.

O tempo passou

A cor não muda o amor que sinto por minha filha Gabriela, que é preta. Ela é o amor da minha vida. É inexplicável o que sinto por ela. O fato de ela não se parecer geneticamente comigo é indiferente. Não faz diferença também ela não ter vindo do ventre da minha companheira. O que importa é o amor nos nossos olhares quando estamos frente a frente. Nossa cumplicidade. Nossa irmandade. É fútil demais pensar o contrário.

Desde que decidimos adotar uma criança preta, lá vinha a Dada me cutucar.:

— Tem certeza que vai mesmo querer uma criança preta? Olha lá, hein, depois não reclama porque a barra é pesada. E ria.

— Credo, Dada, para com isso, parece que tá torcendo contra?!

— Não tô, não, meu filho. É a realidade, por isso estou te lembrando, falo assim porque eu te amo. Se não quiser é só me avisar. Eu paro.

— Não! Também não é assim, né, Dada, continua falando, por favor.

— Melhor quem fala a verdade do que alguém que só fica alisando e na hora que a bomba estoura passa longe.

Aprendi a enfrentar o racismo junto com Gabriela

No meu dia a dia de pai, sempre que algo “estranho” (para dizer o mínimo) acontecia em relação ao preconceito com a adoção ou em relação à cor da Gabi eu me lembrava dos conceitos que Dada havia me passado. Às vezes eu dividia isso com ela e, felizmente, graças ao seu ótimo humor irônico, a conversa terminava em risada, por mais pesado que fosse o assunto ligado a racismo ou preconceito.

Outra pessoa que muitas vezes enfrentou o racismo e o preconceito de um jeito inusitado é a Gabi. Ela era debochada junto comigo com as pessoas que eram racistas. Tudo acontecia na base do “acho lindo, só estou perguntando porque admiro demais quem adota. Deus está vendo o que você tá fazendo pela menina.”

Nessas horas eu me pergunto em voz baixa: O que é isso? Eu perguntei alguma coisa para essa pessoa? Sai pra lá.

Uma criança que vem por adoção não é uma coitada. Uma criança preta também não. O pensamento contrário a isso é uma forma brutal de discriminação.

Felizmente, após eu reagir às porcarias que eu ouvia quando passeava com Gabi, ela e eu  caíamos na risada. Até imitávamos a tal pessoa em casa para a Dada. É claro que a gente ficava bravo (eu um tanto a mais, confesso), mas fomos percebendo que o deboche e o bom humor eram ótimas soluções.

Ao mesmo tempo, é preciso lembrar: eu sempre fui muito racista, especialmente quando achava que não estava sendo racista com aquelas frases absurdas que ouvimos por aí e que não ouso mais repetir nem aqui nem em lugar nenhum. Como já disse aqui na coluna, eu percebo o racismo em mim todos os dias; nas minhas atitudes e nos meus pensamentos, o que é ainda pior.

Racismo é problema dos brancos e eu faço parte dessa branquitude racista, discriminatória e hipócrita. A luta antirracista nem começou. Vamos acordar?

Sou muito feliz tendo uma filha preta vinda por adoção. Só sei que é assim. Felizmente estou conseguindo ser o pai que meu pai não teve tempo de ser comigo.

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O colunista Antoune Nakkhle

*Antoune Nakkhle é jornalista, assessor de comunicação e imagem e pai da Gabriela, de 20 anos. Um pai branco de filha preta.

Se quiser falar com o autor: paibrancofilhapreta@gmail.com

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