O jornalista Antoune Nakkhle compartilha uma história de racismo que sua filha sofreu por conta de seu cabelo
Antoune Nakkhle* Publicado em 28/03/2023, às 06h00
- Papai, a Quequé , da minha sala, falou que meu cabelo é feio...porque ele fica em pé quando eu tiro o rabo de cavalo...Disse que o meu cabelo é ruim e deu risada.
- E o que você disse para ela, filha?
- Eu disse que feia era ela.
- Só?
- Só. Por que, papai?
- Da próxima vez manda ela passear.
- Passear? Por que? Que estranho....
- Manda ela passear com os outros burros como ela.
- Papai, mas assim você tá chamando ela de burra também!
- Isso mesmo, filha. Porque burro anda com burro. Entendeu? Todo preconceituoso é burro. Isso que ela fez com você chama preconceito.
Gargalhadas dos dois e fim de papo.
Só que não. Dez minutos depois, volta Gabi e dispara:
- Papai, por que a Quequé falou que o meu cabelo é ruim? Se meu cabelo é ruim eu também sou ruim?
- Filha, deixa eu explicar: antes de mais nada, eu acho que a Kéthlen (o nome dela é Kéthlen, não é?) precisa conversar com a professora. Você contou para ela?
- Não, pai, porque ela ouviu e daí disse pra gente parar de brigar por bobagem.
- E ela disse o que para a sua amiga?
- Ah, que cada um é de um jeito, que todo mundo é bonito. Só que a Quequé continuou a rir de mim longe da professora, imitando meu cabelo em pé quando eu tirava o rabo de cavalo...ela disfarçava e fazia pra mim quando ninguém estava vendo!
- Então tá na hora de você conversar para valer com a Quequé. Se eu fosse você eu falava com a diretora, contava tudo o que aconteceu e pedia para ela conversar com a Quequé na sua frente - arrisquei.
- Não sei se eu consigo, pai.
- Por que, meu amor?
- Não sei explicar, eu sinto uma coisa estranha por dentro – começa a chorar. Eu gosto dela e queria que ela também gostasse de mim.
- Eu entendo você, meu amor, vem cá...Mas me diz uma coisa...
- O que, papai...?
- Você acha Kéthlen um nome bonito?...
Gargalhada em dobro.
Na nossa vida muitas vezes era assim. A gente conversava sobre o que acontecia e a tristeza que isso provocava. Episódios e episódios de discriminação, preconceito e racismo. Muitas vezes nos emocionávamos juntos; no entanto, quase sempre terminávamos o papo dando risada. Era o melhor que eu conseguia fazer. O assunto vem de surpresa e você precisa acolher seu rebento na hora. E reafirmar seu amor por sua filha preta, que veio por adoção.
Quem não se lembra das marchinhas de carnaval? Especialmente desta, de Lamartine Babo?
“O teu cabelo não nega, mulata Porque és mulata na cor Mas como a cor não pega mulata Mulata, eu quero o teu amor”
Pois é, O TEU CABELO NÃO NEGA. A situação vivida por minha filha com sua amiga Kéthlen foi uma das primeiras de muitas outras que Gabi e inúmeras meninas pretas viveram e vivem constantemente até hoje, fruto do racismo estrutural.
Sempre mostramos para nossa filha, desde pequena, a beleza de seu cabelo.
- Seu cabelo afro, cacheado, além de lindo, representa seu povo e oferece diversas possibilidades de penteado e estilo.
Gabi sempre reconheceu, de certa forma, a beleza do seu cabelo. Mas os comentários maldosos e discriminatórios não acabaram e sempre a acompanharam. Cansa. Chateia. Entristece.
Quando alguém diz que o cabelo da outra pessoa é ruim, isso vem carregado de uma carga muito forte. Malvada. Racista.
- Ah, já vai começar com mimimi? A gente diz cabelo ruim porque é ruim de pentear! Embaraça. É ruim de desembaraçar. Não começa!
Não começa digo eu.
Todas as expressões pejorativas em relação à cor, ao cabelo, aos lábios, ao corpo dos pretos têm o único objetivo de reafirmar que o negro é inferior ao branco e que assim sempre será.
Não mesmo. Não, não e não.
Cabelo liso tambémé ruim. Minha melhor amiga, que se chama Gabriela, tem o nome da minha filha, uma vez comentou comigo sobre a dificuldade de desembaraçar e pentear o cabelo da Luiza, sua filha. É tão fino que embaraça atrás da nuca e às vezes até precisa cortar.
Eu adorava arrumar o cabelo da Gabi. Depois do café da manhã era a hora da beleza: ela sentava de costas pra mim para eu passar o desembaraçante com os dedos em seus cabelos.
- Pai, vai demorar?
- Não. É só você ficar parada que é rápido. Que penteado você quer hoje?
- Tiara! A vermelha, pai!
- Tá, só deixa primeiro eu umedecer e passar os dedos para os seus cachos ficarem bem lindos.
- Não, mudei de ideia! Quero rabo de trança, hoje tem educação física e facilita pra jogar futebol!
- Tá bom... sua fofa! Mas dá pra parar de mexer a cabeça?
- Fofo é você! Não tô mexendo.
- Certo, então olha pra frente enquanto assiste um pouco do filme que eu vou colocar. Pronto. Agora será rápido.
- Acho bom, papai, porque hoje a primeira aula é Artes e não posso atrasar. Mudei de ideia de novo! Dá pra mudar o penteado, papito?!
- Amanhã a gente muda. Agora vamos.
A pessoa que ouve falas racistas e discriminatórias pode sofrer diversos bloqueios na autoestima. Cabelo é cabelo. Só isso.
Nossa Gabi é valente e sempre caminhou adiante. Uma vez fez chapinha no cabelo. Adorou, mas na hora disparou:
- É muito legal, mas não sou eu, pai. Prefiro meu cabelo.
Recentemente, Gabriela descobriu as tranças e está vivendo este momento. Percebeu que seu cabelo também pode ser trançado, como atualmente ela escolhe usar. Seu cabelo a ajuda a descobrir sua identidade.
Cabelo bom.
*Antoune Nakkhle é jornalista, assessor de comunicação e imagem e pai da Gabi, de 18 anos. Mulher preta e adotada. Um pai branco de filha preta.