Pensamento Crítico: O que podemos aprender com os nativos Maori

Usando métodos dos Maori como um modelo para integrar o pensamento crítico na vida cotidiana

Kald Abdallah* Publicado em 12/03/2025, às 06h00

O médico Kald Abdallah -

Imagine um nativo Maori acordando pela manhã para 1 dia de pesca com alguns membros da tribo; sem nenhuma tecnologia, este grupo sai para navegar e pescar. Com as informações coletadas da própria natureza, este grupo consegue saber bem aonde ir, como chegar e através dos ventos, dos pássaros, correntezas, ondas, estrelas, sol, navegar o mar aparentemente infinito.

Cada membro do grupo sabe o que fazer, como colaborar, se adaptando integralmente a natureza e ao trabalho colaborativo. Cada um aprendeu no decorrer de anos, como interpretar as informações que a natureza passava. Metodicamente e empiricamente transformando todas estas informações em pequenas decisões que permitiram a todos pensar em sintonia e trabalhar colaborativamente.

A integração entre cada membro do time, se refletia na forma como cada um pensava, como parte de um grupo coeso que entendia o ambiente ao redor e se adaptava de forma bem-sucedida.

Esta capacidade cognitiva de capturar informações empíricas do ambiente e utilizar essas informações de uma forma efetiva para estar conectado e integrado a como se adaptar a este ambiente demonstra uma capacidade de pensar que segue os principais princípios do pensamento crítico. O nativo maori pensava criticamente.

O objetivo da cognição humana não é estar certo e ser racional, mas permitir uma adaptação integrada e flexível ao mundo dentro de um time, a rede social daquele indivíduo. No episódio anterior falei bastante da importância da socialidade humana e como esta torna cada membro da sociedade muito mais adaptado e flexível em relação ao mundo que vivemos. A cognição do catador caçador estava muito mais adaptada ao ambiente e ao grupo em que viviam do que as pessoas no mundo de hoje.

As pessoas hoje frequentemente têm a impressão de que a nossa cognição é muito mais desenvolvida hoje do que há 20 ou 30000 anos atrás. Porém convém lembrar que uma pessoa que vivia numa tribo na fase pré agricultura estava frequentemente muito bem adaptada aquele ambiente. O catador caçador conseguia entender o mundo que o cercava e se adaptar rapidamente a todas as mudanças e desafios do dia a dia. O objetivo da cognição humana foi permitir a sobrevivência deste indivíduo para este ambiente, com a tribo, uma capacidade surpreendente de adaptação e flexibilidade.

A informação coletada pelo nativo maori durante a caça ou navegação tinha uma função específica e era utilizada de forma sistemática para entender como agir. Informação é transformada em conhecimento, que então era transformado em ação. Havia uma integração entre a informação coletada do dia a dia e as ações. Informações e conhecimento eram transformados decisões sábias e adaptadas aquela realidade.

Este processo lento, gradual, sistemático, de aprendizado social, com atividades em grupo, observação contínua de fatos, informações coletadas no dia a dia, demonstra uma cognição completamente integrada as informações, a análise, ao aprendizado, e a forma de pensar.

Hoje o cenário é bem diferente, os princípios mais fundamentais do pensamento crítico não são aplicados pela grande maioria das pessoas e estão desconectados do sistema ao redor de cada um. Pensar criticamente é uma habilidade rara hoje. Gostaria de destacar 3 problemas na forma como pensamos hoje:

1 ) O conhecimento não está sendo transformado em ação, grande volume de informações são consumidas sem nunca ser aplicadas. As informações que a grande maioria das pessoas obtêm no dia a dia está desconectada da realidade daquela mesma pessoa. Grande parte das informações consumidas estão relacionadas a eventos distantes, conceitos genéricos, informações sucateadas, que inundam a vida de cada um sendo que estas informações não são sistematicamente analisadas e transformadas em decisões que irão trazer o bem-estar. Imaginar alguém que sistematicamente entende o que está acontecendo ao seu redor, coletando informações de fontes relevantes, informações estas aplicáveis em decisões, é uma disciplina metodológica que acredito ser muito rara hoje. Uma coisa é ficar horas discutindo eventos políticos completamente irrelevantes, a outra é entender como melhorar a própria dieta, coordenar melhor as próprias finanças, melhorar os próprios relacionamentos, tomar decisões mais sábias. Informação sem aplicação é barulho e reflete uma incapacidade cognitiva de pensar criticamente.

2 ) Outro ponto importante, o nativo maori que passou a vida aprendendo a pensar de uma forma completamente integrada ao ambiente que vivia, estava em uma realidade muito diferente da de hoje. Hoje nem a escola e nem a família tem um processo disciplinado e sistemático para ensinar cada um de nós a pensar criticamente. Esta é uma habilidade cognitiva que pode e deve ser treinada, cada vez mais o futuro do profissional depende de saber pensar criticamente. Poucas pessoas vivem em um ambiente que permitiram desenvolver a cognição de uma forma sofisticada e completamente integrada com as pessoas e com a realidade. O fracasso da escola no ensino do pensamento crítico se reflete na falta de preparação dos professores, na falta de oportunidade para debate dentro da escola, na pobreza do diálogo entre as pessoas, na falta de uma metodologia apropriada e na falta de métricas de mensuração de sucesso no ensino do pensamento crítico. A habilidade mediana de pensar criticamente de um universitário hoje é medíocre no Brasil.

3 ) O terceiro ponto que gostaria de destacar é a falta de diálogo e debate, a cognição humana evoluiu dentro de uma espécie ultrassocial, cujo objetivo primordial era colaborar. Trabalhar em um time que debate as ideias de uma forma efetiva e mantem um diálogo produtivo onde todos pensam criticamente não é comum. Pessoas que convivem em um ambiente com debate e diálogo ricos se destacam e apresentam produtividade e criatividade que as tornam pontos foras da curva, outliers.

Portanto podemos resumir o fracasso do pensamento crítico na maioria das pessoas em 3 grandes problemas fundamentais: informação sucateada que nunca é transformada em sabedoria e decisões apropriadas, falta de estrutura para o treinamento do pensamento crítico nas escolas e dentro da família, e a falta de oportunidade de um diálogo e debate produtivo.

Caso você queira estudar o que é pensar criticamente, eu acredito que você deverá ler bastante. Não só a ciência da cognição humana, mas também entender aspectos da nossa socialidade, comunicação, decisão entre muitos outros treinamentos. É possível ficar anos estudando pensamento crítico e se perdendo numa quantidade absurda de conhecimento, só para ter uma ideia existem mais de cem vieses cognitivos diferentes descritos.

Pensar criticamente na minha opinião não é pensar como o Spock, de uma forma lógica racional e isolada, mas sim consumir informações apropriadas transformando estas informações em decisões sábias, pensar de uma forma integrada, colaborando com as pessoas ao seu redor para se adaptar esta realidade de uma forma sábia, para que todos fiquem mais felizes, ricos e saudáveis.

Apesar do volume absurdo de ciência por trás do pensamento crítico e da cognição humana, acredito que o pensar criticamente pode ser destilado em alguns poucos princípios.

Mas afinal, quais são os princípios do pensamento crítico?

 

Objetividade

1 ) Separa fatos de opiniões: Distingue claramente o que é comprovado por evidências do que são meras interpretações ou crenças pessoais.

2 ) Considera diferentes perspectivas: Está aberto a diferentes pontos de vista e analisa os argumentos de forma imparcial.

3 ) Evita generalizações apressadas: Baseia suas conclusões em evidências suficientes e não em casos isolados ou estereótipos.

Abordagem Sistemática

A abordagem sistemática, por sua vez, refere-se à aplicação de um método organizado e estruturado para analisar informações e chegar a conclusões. Um pensador crítico que aborda um problema sistematicamente:

1 ) Define claramente o problema: Identifica o problema a ser analisado de forma precisa e concisa.

2 ) Coleta informações relevantes.

3 ) Analisa as informações de forma lógica: Organiza as informações coletadas e as avalia de forma crítica, identificando padrões, inconsistências e lacunas.

4 ) Considera diferentes hipóteses para o problema e avalia a plausibilidade de cada uma.

 

Evidência Empírica baseada em informações relevantes

1 ) Proteção contra o viés: Ao exigir evidências concretas, o ceticismo nos ajuda a evitar que nossos julgamentos sejam influenciados por nossos preconceitos ou emoções.

2 ) Promoção da objetividade: A busca por evidências empíricas nos leva a analisar as informações de forma mais objetiva, sem nos deixar levar por argumentos falsos.

 

A Importância da falsificabilidade no Pensamento Crítico

A falsificação é quando alguém pode provar que você está errado, este é um dos critérios mais fundamentais que o pensamento científico e do pensamento crítico.

 

Revisão por pares e colaboração

Você precisa saber dialogar e debater ideias. Saber e aprender são processos fundamentalmente sociais. Expor as nossas posições e perspectivas a pressão de outras pessoas cria uma forma saudável de avaliação por pares. No caso do processo científico, a revisão por pares é um método em que especialistas em um determinado campo avaliam o trabalho de seus colegas. Essa prática é fundamental para garantir a qualidade da pesquisa e do conhecimento científico. Ao submeter suas ideias à análise de outros você:

1 ) Fortalece seus argumentos: A crítica construtiva dos pares ajuda a identificar falhas e a aprimorar os argumentos. Um diálogo rico traz um pensamento mais apurado.

2 ) Aumenta a credibilidade: A aprovação por pares confere maior credibilidade aos resultados de uma pesquisa.

3 ) Promove a colaboração: A revisão por pares estimula o diálogo e a troca de ideias entre pesquisadores.

4 ) Combina diferentes perspectivas: A diversidade de ideias e experiências enriquece a análise de um problema.

 

Desenvolvimento cognitivo moral e ético

Caso você queira entender como pensar criticamente, recomendo que você ouça também o podcast sobre cognição moral, podcast número 3. Pensar as consequências de cada ação e ou decisão para proteger o bem-estar de todos e de si mesmo reflete uma cognição moral bem desenvolvida. Incorporar uma reflexão cuidadosa e engajada nas ações do dia a dia, nas intenções, nos relacionamentos sociais, nos objetivos pessoais e profissionais irá aumentar bastante o esforço cognitivo necessário, resultando em uma qualidade que pode ser resumida em uma palavra – SABEDORIA.

 

Veja também

 

Integração

O pensamento e a análise do dia a dia devem estar integrados com a vida da pessoa no espaço ao redor considerando as decisões que são necessárias para que cada ação seja adequada e efetiva.

O pensador crítico vive dentro do mundo em que se insere. O pensador crítico é com uma pessoa sábia e respeitada. Este é um ponto fundamental, ser racional sozinho não significa nada. É fundamental entender que o seu pensamento deve estar integrado com o sistema a seu redor para que a sua vida e a vida das pessoas ao seu redor sejam mais ricas, felizes e saudáveis. Pensar criticamente não é um esporte individual. Pelo menos não na forma como o ser humano pensava criticamente na fase pré agricultura.

Imaginar que a grande maioria das pessoas hoje tem uma cognição que pensa criticamente mal quando comparado com um catador caçador de 20 a 30000 anos atrás é de certa forma surpreendente.

O desenvolvimento do pensamento crítico requer vários níveis diferentes e leva tempo. Porém a capacidade do design humano permite que isso aconteça. Como chegar lá é uma pergunta para você responder pensando criticamente.

 

Se você desejar se aprofundar neste assunto, ouça o episódio 26 do Podcast.

Podcast Conexão Sapiens – A ciência desvendando você!

www.conexaosapiens.com.br

*Meu nome é Kald Abdallah, sou paranaense, cresci numa pequena cidade no norte do Paraná chamada Borrazópolis. Eu sou médico formado pela Universidade Estadual de Londrina (minha querida UEL). Fiz residência e doutorado na Faculdade de Medicina da Universidade de São Paulo, pós-doutorado pela Faculdade de Medicina da Universidade de Harvard, em Boston nos EUA. Já trabalhei na prática clínica, como professor de medicina, executivo e pesquisador. Há 23 anos me dedico a luta contra o câncer, nos últimos 17 anos morando e trabalhando aqui nos EUA. Recentemente, comecei um projeto que tem sido uma verdadeira paixão para mim: o Conexão Sapiens – A ciência desvendando você! É um podcast que busca ir além das estórias passageiras, oferecendo uma exploração profunda e duradoura com o objetivo de sintetizar a ciência no apoio a sua jornada de crescimento social, pessoal e cognitivo. Esta síntese é o resultado de mais de 2 décadas de estudo.

Convido você a participar dessa jornada de crescimento social, pessoal e cognitivo comigo!

Por favor divulgue e para ouvir o podcast, acesse uma das plataformas abaixo:

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*com edição de Marina Yazbek Dias Peres

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