O colunista Kald Abdallah, médico, faz uma reflexão sobre a felicidade, que também passa pela conexão entre o emocional e o físico de cada um
Kald Abdallah* Publicado em 23/11/2024, às 06h00
Os seres humanos evoluíram no decorrer de vários milhões de anos em constante contato com o ambiente ao redor. O caçador catador estava sempre atento ao próprio corpo, ambiente, sons, odores, qualquer sinal que pudesse ajudar nas atividades diárias e ou sinalizar perigo. O convívio social era muito íntimo, cada um precisava prestar atenção no outro para colaborar nas atividades do dia a dia. Para a nossa sobrevivência, cada indivíduo necessitava uma intimidade profunda com o próprio corpo e com o ambiente ao redor. A conexão entre mente e corpo era fundamental para que os seres humanos se integrassem ao ambiente.
Hoje em dia há uma desconexão significativa entre corpo e mente, algumas pessoas passam horas antes de perceber que estão com fome ou cansadas. A atenção está cada vez mais voltada às telas e passamos o dia no piloto automático. Estamos gradualmente esquecendo do nosso corpo. Mesmo na academia, quando fazendo exercício, as pessoas estão distraídas com telas. Existe uma grande diferença entre uma caminhada numa trilha dentro da natureza, atento às árvores e ao som dos pássaros e andar na esteira olhando para a televisão.
Além de praticar meditação e ioga há mais de 20 anos, criei o hábito de, no decorrer do dia, fazer pequenas checagens da situação do meu corpo. Eu paro e observo minha postura, meus 5 sentidos, as emoções e sensações internas por alguns minutos. Presto atenção especialmente quanto a presença de FRSC – uma sigla que significa fome, raiva, solidão e cansaço. Sei que este é um relato anedótico, mas este hábito teve um impacto profundo para mim. Além disso, evidências científicas demonstram que melhorar o nível de consciência corporal é uma ação efetiva para trazer o bem-estar e equilíbrio. Treinar a sua consciência corporal é uma das recomendações mais importantes que farei.
Em uma das muitas reorganizações que observei durante a minha carreira, lembro-me bem uma vez que fiquei impressionado com a calma e a tranquilidade de uma diretora que tinha acabado de perder o emprego. Ela estava lidando com a situação de uma forma elegantíssima. Esta diretora demonstrou uma autoestima e um autoconhecimento invejáveis. Vale notar que ela trabalhava como instrutora de yoga nas horas vagas. Coincidência ou não, a yoga aumenta a nossa consciência corporal.
Hoje eu entendo bem a razão desta minha colega de trabalho ser tão confiante e segura de si. A nossa identidade, ou seja, a resposta que daremos à pergunta “quem é você?” é uma construção mental que incorpora vários aspectos, tais como personalidade, corpo, relações sociais, emoções, cultura, entre outros. Portanto, múltiplos fatores interagem na construção mental da nossa identidade, porém a consciência corporal é um dos alicerces fundamentais da identidade. Você é seu corpo e seu corpo é você, conectar-se com o seu corpo irá te trazer autoconfiança, autoconhecimento e consolidará a qualidade da construção mental da identidade. A vida fica mais fácil quando a gente tem convicção de quem a gente realmente é.
Outro ponto importante é que as emoções humanas se manifestam através do nosso corpo, sendo que o amor e a felicidade são sentidos pelo corpo todo: a vergonha se manifesta predominantemente no rosto e a raiva no rosto e tórax. Aprender a reconhecer as diferentes sensações que as emoções nos trazem será um passo fundamental no desenvolvimento de uma cognição emocional, ou inteligência emocional, caso queira utilizar o termo mais amplamente reconhecido.
Considerando as manifestações fisiológicas das diferentes emoções, não é muito fácil diferenciar o amor da alegria ou a raiva do medo, por exemplo. Uma consciência corporal aguçada com uma atenção aos detalhes e nuances das sensações irá permitir o indivíduo a reconhecer precisamente as próprias emoções, o primeiro passo na avaliação emocional do que está acontecendo dentro de nós mesmos.
Ouvir o seu corpo também irá melhorar a sua saúde biológica. Ainda me lembro de um caso de uma paciente que foi internada para investigação de dor abdominal no final da minha faculdade de medicina. Após uma investigação extensa que incluiu endoscopia, entre outros testes, concluímos que a dor que a paciente sentia era fome, pois a dor começava após um período de jejum e passava após a refeição, e todos os exames eram normais.
O caso desta paciente ilustra bem as consequências da interpretação errônea dos sinais que recebemos do nosso corpo, pois não conseguir interpretar os sinais de que o nosso corpo traz cria insegurança e incerteza do que está acontecendo. Uma percepção afinada das sensações internas pode conectar a nossa mente com sintomas de diferentes doenças, e isso permite um manejo da nossa saúde muito mais refinado.
Imaginar que uma pessoa pode ter uma consciência corporal tão desconectada que é incapaz de discernir dor e fome ilustra bem este ponto. Também importante estarmos atentos à nossa própria fisiologia, identificar quando estamos cansados, com fome, com sede etc. Estar atento às nossas sensações internas permite também evitar o ruído cognitivo causado por estas. Por exemplo, não se irritar com os filhos porque você está cansado.
Exercícios de respiração da ioga e meditação demonstraram um efeito benéfico em quadros de ansiedade, na qualidade do sono, dor crônica e vários outros problemas médicos. Portanto, intervenções que combinam Mindfulness, consciência corporal e espacial podem ser extremamente benéficas para o bem-estar do indivíduo. Tai Chi, Pilates, ioga e meditação são exemplos de intervenções com evidências científicas sólidas.
Para ilustrar esse ponto, acredito que poucas pessoas tenham uma consciência profunda das sensações relacionadas à fome. Estudos científicos demonstraram que uma baixa consciência corporal causa uma saciedade tardia, fazendo com que as pessoas comam mais do que o necessário, e tenham um maior índice de massa corpórea, ou seja, a falta de sintonia com seu próprio corpo engorda.
Considerando a epidemia de obesidade, criar o hábito de avaliar as sensações internas da fome pode treinar a sua cognição a reconhecer mais precocemente à saciedade, diferenciar a fome da ansiedade, do tédio e da tristeza. Da mesma forma que uma meditação explora as sensações do seu corpo, é possível explorar todas as sensações desencadeadas pela fome, permitindo então encontrar uma dimensão nova e mais profunda do prazer de comer. Este é somente um exemplo dos muitos possíveis no treinamento da consciência corporal e da interocepção.
A consciência corporal também pode ter um impacto benéfico na nossa cognição, ou seja, na forma como a gente pensa. Uma das características da cognição humana é a capacidade de viajar no tempo, ou seja, seres humanos têm a capacidade de refletir a respeito do passado e criar modelos de futuros possíveis. Esta capacidade cognitiva foi extremamente eficaz no período pré agricultura, porém hoje é uma grande fonte de sofrimento humano, pois frequentemente nossa mente está perdida no passado, ruminando ressentimentos, ou obcecada com o futuro, fantasiando catástrofes.
É importante diferenciar entre a viagem no tempo bem adaptada, refletir sobre o passado ou planejar o futuro, e a viagem no tempo mal adaptada, ruminar o passado cultivando mágoas e ressentimentos ou fantasiar catástrofes futuras gerando ansiedade e insegurança.
Quando estamos viajando no tempo de forma mal adaptada, uma pessoa com um treinamento de consciência corporal tem a oportunidade de facilmente redirecionar a atenção para o próprio corpo e o momento de agora. Por exemplo, enquanto você está no metrô indo para casa, já imaginou ter o superpoder de em vez de ruminar ou ressentir algo que o colega de trabalho fez, relaxar a sua mente com respirações coordenadas enquanto ajusta a postura de seu corpo?
Um treinamento disciplinado da consciência corporal através de diferentes metodologia (por exemplo Tai Chi, ioga, meditação e Pilates) pode oferecer um mecanismo de ancoragem da atenção. Esta âncora pode então ser utilizada a qualquer momento que o indivíduo julgar necessário. Este treinamento de manter a nossa atenção e consciência no agora e dentro do nosso próprio corpo é a base de várias abordagens que buscam o bem-estar e um dos motivos pelo qual a palavra mindfulness é tão popular hoje em dia.
Convém lembrar que mindfulness é praticada na ioga e na meditação budista há mais de 2000 anos e estudos de imagem com meditadores de longo prazo demonstram altos níveis de felicidade e bem-estar. Por favor, não subestime o impacto no bem-estar de uma pessoa, que ao invés de ficar horas todos os dias perdidas no tempo e no espaço, fica sintonizada com o próprio corpo, o momento presente e o espaço ao redor, pois esta pode ser uma das intervenções mais transformadoras na sua vida.
Outro ponto fundamental na importância de se desenvolver uma consciência corporal profunda, é a relação que temos com o espaço ao nosso redor. Por exemplo, quando alguém vai entrar em um elevador e a pessoa que está dentro do elevador fica parada na porta sem dar espaço para você passar, dá para perceber que ela não está fazendo de propósito, porém esta pessoa não tem consciência de como o corpo dela está se conectando com o espaço ao redor. Estar presente no momento de agora, consciente do próprio corpo e consciente do espaço ao redor são habilidades que não se desenvolvem naturalmente na vida moderna.
Resumindo, treinar a nossa consciência corporal, melhora a nossa identidade e percepção do self, refina a cognição emocional, afina a sintonia entre sua mente e a saúde do seu corpo, conecta sua mente com o agora e o espaço ao seu redor, servindo de âncora para a sua cognição parar de viajar no tempo, se tornando um instrumento fundamental para reduzir ressentimentos e ansiedade. Uma alta consciência corporal facilita tantos aspectos do crescimento e desenvolvimento, não buscar esse objetivo seria perder uma oportunidade única no caminho para uma vida plena.
Podcast Conexão Sapiens – A ciência desvendando você! No episódio 9 discuti em mais profundidade este assunto!
Meu nome é Kald Abdallah, sou paranaense, cresci numa cidade pequena no norte do Paraná chamada Borrazópolis. Eu sou médico formado pela Universidade Estadual de Londrina (minha querida UEL). Fiz residência e doutorado na Faculdade de Medicina da Universidade de São Paulo, pós-doutorado pela Faculdade de Medicina da Universidade de Harvard, em Boston nos EUA.
Já trabalhei na prática clínica, como professor de medicina, executivo e pesquisador. Há 23 anos me dedico a luta contra o câncer, nos últimos 17 anos morando e trabalhando aqui nos EUA. Recentemente, comecei um projeto que tem sido uma verdadeira paixão para mim: o Conexão Sapiens – A ciência desvendando você! É um podcast que busca ir além das estórias passageiras, oferecendo uma exploração profunda e duradoura com o objetivo de sintetizar a ciência no apoio a sua jornada de crescimento social, pessoal e cognitivo. Esta síntese é o resultado de mais de 2 décadas de estudo.
Convido você a participar dessa jornada de crescimento social, pessoal e cognitivo comigo!
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