Como enfrentar a vida e encontrar significado nela em meio aos seus desafios e a realidade de uma doença terminal
Kald Abdallah* Publicado em 28/06/2025, às 06h00
Há cerca de dois anos, precisei me aposentar e encerrar minha carreira de pesquisador na área de câncer devido a problemas de saúde, pois desenvolvi uma doença neuromuscular progressiva, incurável e fatal: a esclerose lateral amiotrófica (ELA). Receber esse diagnóstico não é fácil, especialmente pela falta de opções terapêuticas eficazes e pela progressão. Saber que você tem uma doença incurável, progressiva e fatal transforma completamente sua perspectiva de vida. Hoje, vou compartilhar como consegui reagir a essa situação de maneira adaptada.
Uma das primeiras coisas que vem à mente quando você começa a refletir sobre um diagnóstico como o da ELA é em relação às decisões que você tomou na vida. Ter vivido com uma direção clara, alinhando objetivos e ações, respeitando os próprios valores, buscando coerência, significado e pertencimento, permite que, no momento dessa avaliação, você não sinta arrependimentos profundos. Não consigo imaginar algo tão importante quanto, neste momento, ao descobrir que sua vida tem um prazo, poder olhar para trás sem arrependimentos.
Esta é a missão do meu podcast: mostrar como a ciência pode te ajudar a chegar neste momento com poucos arrependimentos e sem nenhum arrependimento significativo. Enfrentar o caminho para a morte com a convicção de não ter nenhum arrependimento significativo não tem preço.
É essencial entender que a preparação para enfrentar um diagnóstico tão desafiador como o da ELA envolve mais do que apenas uma avaliação das decisões passadas. É sobre construir uma vida que, mesmo diante de adversidades, seja rica em propósito e significado. Isso implica em viver de forma consciente, valorizando cada momento e cada experiência, e construindo relacionamentos significativos. Ou seja, entender a essência do que significa ser membro da espécie humana.
A preparação para a morte, na minha concepção, significa uma busca constante por uma vida plena. Isso envolve contribuir para a comunidade, encontrar propósito e satisfação nas atividades diárias, e aceitar a inevitabilidade da vida. Ao viver plenamente, estamos também nos preparando para o fim.
Portanto, ao invés de ver a doença como um adversário a ser derrotado, devemos vê-la como uma parte da jornada da vida. E nessa jornada, o verdadeiro desafio é viver de forma autêntica e significativa, buscando sempre o crescimento pessoal e a conexão com os outros.
Diante dessa nova situação, uma das minhas primeiras atitudes foi assegurar que eu não perdesse o controle e a direção da minha vida. Era essencial agir com propósito e efetividade. Para isso, mantive um método estruturado: definia claramente o desafio que precisava enfrentar, considerava todas as opções possíveis, estabelecia um objetivo claro e, então, implementava um plano bem estruturado. Perder o controle do "navio" e transformar minha vida em um barco à deriva era uma preocupação constante que eu precisava evitar.
Além disso, busquei apoio em pessoas de confiança, compartilhando minhas preocupações e ouvindo conselhos valiosos. A troca de experiências e a busca por diferentes perspectivas me ajudaram a enxergar soluções que, muitas vezes, não eram óbvias à primeira vista. A resiliência e a capacidade de adaptação foram fundamentais para superar os obstáculos e seguir em frente.
A cada passo, eu me lembrava da importância de manter a calma e a clareza mental. Praticar atividades que promoviam o bem-estar físico e emocional, como exercícios físicos e meditação, também foi crucial para manter o equilíbrio e a força necessária para enfrentar os desafios. Assim, consegui transformar uma situação adversa em uma oportunidade de crescimento e aprendizado contínuo.
Apesar de um futuro relativamente limitado, minha primeira preocupação foi entender o que fazer para minha prioridade número um: meus filhos. Comecei a tomar atitudes de forma sistemática e metódica para ter um bom plano de ação. Decidi ser completamente transparente com meus filhos sobre o diagnóstico, o prognóstico e como eu estava. Uma das surpresas mais gratificantes foi perceber a empatia e o controle emocional que meus filhos demonstraram. Apesar da pouca idade, um filho de 18 e uma filha de 21 anos, ambos mostraram compaixão, coragem, sabedoria e calma.
Acredito que várias habilidades me permitiram enfrentar essa prioridade de maneira objetiva e bem planejada. Primeiro, mais de duas décadas de treinamento em pensamento crítico me permitiram ser cético de forma saudável em relação a tudo o que minha mente me trazia. Isso me ajudou a definir minha prioridade e o que fazer a respeito, sem mudanças dramáticas de um dia para o outro, apesar da tempestade de emoções que ocorre nos primeiros meses após um diagnóstico como este. A segunda habilidade foi a capacidade de refletir sobre meus pensamentos e sentimentos, ou seja, minha habilidade metacognitiva. Porém, quando a crise surge a capacidade de pensar criticamente, a consciência corporal e a habilidade metacognitiva já devem ter sido desenvolvidas.
Pensar criticamente sobre tudo o que estava acontecendo de forma sistemática me permitiu desconstruir narrativas que poderiam ter trazido muito sofrimento. Por exemplo, ao receber um diagnóstico como este, é comum sentir uma profunda sensação de injustiça. "Por que eu, que sempre trabalhei para salvar vidas, mereço ser punido com uma doença terminal décadas antes da expectativa de vida normal?" Esse pensamento é carregado de emoção, mas ao refletir sobre o que é a doença, percebi que não é mais injusto do que uma árvore cair sobre seu carro e te matar, ou morrer por um relâmpago. É simplesmente um evento aleatório que acontece com algumas pessoas todos os anos. O universo não está conspirando contra mim; coisas ruins acontecem com todos nós em algum momento. Desconstruir essa narrativa de injustiça cósmica é importante porque, se alimentada, pode se tornar uma fonte de sofrimento prolongado e sabotar a possibilidade de encontrar alegria e aproveitar o presente.
Outro desafio importante que surgiu imediatamente após o diagnóstico foi lidar com a tristeza que acompanha a perda. Em mim, a tristeza se manifesta como uma sensação subjetiva de amortecimento no tórax e um peso na cabeça. Não sei exatamente como a tristeza se manifesta em outras pessoas, mas, gradualmente, durante minhas meditações e exercícios de consciência corporal, aprendi a reconhecer muito bem como ela se apresenta em mim. É lógico que apenas reconhecer a tristeza não é suficiente, mas é um passo fundamental para lidar com esse sentimento tão difícil. Refletindo sobre isso, percebo que uma alta consciência corporal, desenvolvida ao longo de mais de duas décadas de meditação e yoga, me ajudou muito a ter a habilidade necessária para reconhecer essa emoção com facilidade.
Vale destacar que a vida não se apresenta de forma clara e simples; frequentemente, as coisas se misturam e podem ter um efeito sinérgico negativo em tudo o que está acontecendo. Para ilustrar, gostaria de mencionar um exemplo de como a tristeza e a fadiga podem tornar toda a narrativa da sua mente extremamente negativa. Uma das características mais evidentes da ELA é a fadiga central, que, quando combinada com a tristeza, faz nossa mente viajar para lugares muito sombrios. No entanto, quando a consciência corporal é refinada o suficiente para que você reconheça a presença de ambas - fadiga e tristeza - você pode planejar com calma os passos necessários para administrar a fadiga, tornando tudo o que está acontecendo muito mais leve. Após se recuperar da fadiga, a tristeza vai embora rápido, desde que você não permita que esta emoção domine a sua narrativa mental. Pois quando isto acontece, a narrativa mental cria histórias que geram tristeza e a tristeza se torna o combustível da narrativa mental, criando um círculo vicioso.
Agora, imagine como você se sente quando está triste, cansado e com fome. Qualquer pequeno problema pode parecer uma grande catástrofe, e sua perspectiva e narrativa mental se tornam totalmente enviesadas e distorcidas da realidade. É por isso que acredito que o treinamento da consciência corporal é fundamental para permitir que você identifique cada uma dessas sensações e tome ações para resolvê-las de forma eficaz.
Mas afinal, como eu cheguei à conclusão de que a forma como eu estou respondendo ao desafio que a ELA me trouxe é bem adaptada? Esta é uma pergunta que eu pensei bastante.
Meu tratamento está claro e tem sido bem implementado: Minha dieta e nutrição estão excelentes. Minha rotina está bem estabelecida e tranquila. Meu sono é excelente. Minha disciplina com fisioterapia e terapia ocupacional é excelente. Não atinjo critérios de depressão e não estou tomando nenhuma medicação, apenas suplementos nutricionais. Frequentemente percebo que as pessoas têm mais dificuldade de conversar sobre isso do que eu mesmo. Estou engajado em inúmeras atividades de lazer, leio bastante e mantenho meu contato com amigos e família. Em nenhum momento neste processo de 2 anos eu acredito que minha mente chegou próximo de algo que eu caracterizaria como desespero. A meditação e os treinamentos de consciência corporal se intensificaram muito nestes 2 anos e acredito que foram componentes fundamentais da paz interior que eu sinto na grande maioria do tempo.
Permitir que a narrativa da nossa mente crie vilões e vítimas, nutrindo sentimentos de raiva e tristeza, e continuamente permitindo que todas essas emoções mudem nosso comportamento, torna a vida dentro da nossa mente e ao nosso redor um verdadeiro inferno. Quando deixamos que esses sentimentos negativos tomem conta, acabamos vivendo em um estado constante de conflito interno e externo. A raiva e a tristeza podem distorcer nossa percepção da realidade, fazendo com que vejamos inimigos onde não existem e nos sintamos vítimas de circunstâncias que estão além do nosso controle.
Para evitar cair nessa armadilha, é essencial desenvolver a habilidade de reconhecer e gerenciar nossas emoções de maneira saudável. Isso envolve praticar a autocompaixão, entender que todos enfrentamos desafios e que é normal sentir raiva e tristeza em certos momentos. No entanto, é importante não deixar que essas emoções dominem nossa vida, permitindo que estas emoções se tornem as autoras da narrativa mental. Em vez disso, devemos buscar maneiras de processá-las e liberá-las, seja por meio da meditação, da prática de exercícios físicos, ou da conversa com amigos e familiares.
Além disso, é fundamental cultivar uma mentalidade de gratidão e focar nas coisas positivas que temos em nossa vida. Isso não significa ignorar os problemas, mas sim escolher não deixar que eles definam nossa existência. Ao mudar nossa perspectiva e adotar uma abordagem mais positiva, podemos transformar nossa experiência de vida e criar um ambiente mais harmonioso e equilibrado, tanto internamente quanto ao nosso redor.
Um bom companheiro nesta jornada é o humor, poder rir de qualquer coisa, inclusive de si mesmo não tem preço.
Outro ponto importante é que frequentemente, quando enfrentamos um desafio como a ELA, o personagem se torna um herói em uma luta contra o vilão da doença. A narrativa da estória busca transformar o desafio de enfrentar a doença no único inimigo desse herói. No entanto, hoje eu gostaria de descrever de uma maneira diferente. O desafio nada mais é do que a história natural da vida de cada um. A preparação para a morte não deve ser vista como uma batalha contra um inimigo. Estar preparado envolve investir no desenvolvimento individual e social necessário para alcançar uma vida plena. É sobre reconhecer que a morte faz parte do ciclo natural e que, ao viver plenamente, estamos também nos preparando para o fim. Estar preparado para a morte, na minha concepção, significa uma busca constante por uma vida plena.
Portanto, ao invés de ver a doença como um adversário a ser derrotado, devemos vê-la como uma parte da jornada da vida. E nessa jornada, o verdadeiro desafio é viver de forma autêntica e significativa, buscando sempre o crescimento pessoal e a conexão com os outros.
Podcast Conexão Sapiens – A ciência desvendando você!
Meu nome é Kald Abdallah, sou paranaense, cresci numa pequena cidade no norte do Paraná chamada Borrazópolis. Eu sou médico formado pela Universidade Estadual de Londrina (minha querida UEL). Fiz residência e doutorado na Faculdade de Medicina da Universidade de São Paulo, pós-doutorado pela Faculdade de Medicina da Universidade de Harvard, em Boston nos EUA. Já trabalhei na prática clínica, como professor de medicina, executivo e pesquisador. Há 23 anos me dedico a luta contra o câncer, nos últimos 17 anos morando e trabalhando aqui nos EUA. Recentemente, comecei um projeto que tem sido uma verdadeira paixão para mim: o Conexão Sapiens – A ciência desvendando você! É um podcast que busca ir além das estórias passageiras, oferecendo uma exploração profunda e duradoura com o objetivo de sintetizar a ciência no apoio a sua jornada de crescimento social, pessoal e cognitivo. Esta síntese é o resultado de mais de 2 décadas de estudo.
Convido você a participar dessa jornada de crescimento social, pessoal e cognitivo comigo!
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*Com edição de Marina Yazbek Dias Peres
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