Nesta coluna, o médico Kald Abdallah nos traz mais um episódio do seu podcast Conexão Sapiens. Você costuma procrastinar?
Kald Abdallah* Publicado em 19/07/2024, às 06h00
Vitória é uma estudante de medicina do sexto ano. Ela tem uma amiga de infância chamada Roseane que não é uma pessoa fácil. Vitória anda em um campo minado em todas as conversas que têm com a amiga, pois a qualquer momento ela pode ter uma explosão de agressividade, sarcasmo e insultos. Roseane apresenta quadros de comportamento obsessivo compulsivo, ansiedade, fica facilmente ofendida e agressiva. Os maus tratos de Roseane fazem com que Vitória sinta um aperto dentro do peito, náusea e mãos frias.
Nos últimos 2 anos, a situação piorou bastante. Vitória sente-se mal por horas em antecipação a cada vez que vai conversar com a amiga. Apesar de ter tentado por anos convencê-la a fazer terapia ou explorar formas de tratar a doença mental, Roseane se recusa e fica agressiva cada vez que o assunto é discutido. Vitória tem estudado psiquiatria e percebeu que a amiga provavelmente possui algum tipo de distúrbio de personalidade, porém como ela se recusa a procurar qualquer tratamento psicológico, ela não tem certeza do diagnóstico.
Após fazer terapia por 6 meses, Vitória percebeu que o comportamento da amiga deixou um rastro de mágoas e ressentimentos que estão se enraizando por anos. Após longas conversas com a terapeuta, Vitória reconheceu que ela não tinha a influência necessária para mudar a direção do comportamento de Roseane e decidiu cortar relações por completo com a amiga de infância para proteger-se.
Joana está ansiosa e irrequieta há dias e após pensar bastante em tudo o que aconteceu, ela sabe porque está sentindo tanta culpa e vergonha. Durante uma conversa com a filha de 15 anos, Joana perdeu o controle e foi muito agressiva, disse coisas que nunca tinha falado para a filha antes. Tudo aconteceu porque Joana estava muito cansada e estressada naquele dia. Esta será a primeira vez que Joana precisará reconciliar e se desculpar com a filha, pois elas sempre tiveram uma relação excelente.
Joana também percebeu que a filha perdeu a confiança que ela tinha na mãe e está machucada. Joana decide sentar-se com a filha e pedir desculpas pela baixaria. Ela sabe que o caminho da reconciliação não será fácil e que começa no dia em que pedir desculpas sinceras e demonstrar com ações o compromisso de remediar o estrago, um pequeno passo na jornada para reconstruir uma relação tão importante.
Fernando acorda pensando que hoje faz 3 anos que ele ficou bêbado pela última vez. Sóbrio e bem, graças aos conselhos e amizade do chefe no trabalho, uma pessoa que ele admira e respeita. Três anos consertando o estrago profissional e pessoal causado pela bebida, 3 anos pedindo desculpas e reconhecendo a dor das pessoas que foram machucadas no caminho. Porém, apesar de tudo, foram 3 anos em que gradualmente todos voltaram a respeitá-lo, incluindo ele mesmo. Fernando diz que olhar para o espelho de manhã e sentir o orgulho de mais 1 dia sóbrio é um dos melhores momentos do dia.
Fernando, Joana e Vitória demonstraram que têm uma cognição moral treinada, tomaram uma decisão sábia e corajosa e fizeram o que é certo. Avaliar a situação, e tomar uma decisão com o objetivo de atingir o bem-estar de todos, é difícil. A cognição moral é o exercício mental necessário para avaliar uma situação e decidir o que é o certo a se fazer no caso, uma habilidade que pode e deve ser treinada continuamente. Uma sociedade formada por indivíduos com uma cognição moral sofisticada e bem treinada, se torna uma sociedade extremamente bem desenvolvida.
Países desenvolvidos como Canadá ou países nórdicos têm uma cultura diferente, porém algo em comum: uma população com uma cognição moral treinada. A qualidade do diálogo e da reflexão nestes países é admirável. O pai que não para de beber, a mãe que não assume responsabilidade pelos erros, as pessoas que se omitem diante do bullying, a estudante que não corta as pessoas tóxicas, o deputado corrupto e o empresário ganancioso - todos refletem o mesmo problema.
A forma como a gente pensa e sabe algo, ou seja, nossa cognição, evoluiu para fazer análises e decisões em relação a problemas do dia a dia, emoções, socialidade e moralidade. A cognição humana pode e deve ser treinada. Uma cognição moral sofisticada reflete e considera as consequências de cada ação e busca continuamente o bem-estar de todos, inclusive de si próprio. Como diria um ditado budista, todos merecem o nosso amor, inclusive nós mesmos. O desenvolvimento moral aumenta a autoestima pois o nosso self futuro será melhor do que o self atual. Além disso, acreditar em um crescimento futuro aumenta nossa tolerância com o self imperfeito de hoje.
As pessoas frequentemente evitam a reflexão sobre algo difícil, porém o efeito cumulativo desta procrastinação irá sabotar nossas relações sociais e vida emocional, com impacto na nossa reputação e status social. Identificar os problemas mais relevantes e fazer o que é certo, raramente é o mais fácil. Você conhece aquela pessoa que todos admiram devido à sabedoria e à consistência entre discurso e ação? Pois é, esta pessoa desenvolveu a cognição moral consistentemente por anos.
A maioria das pessoas tem um discurso desconectado das próprias ações, critica nos outros o que não faz para si próprio. Uma pessoa que consegue fazer o que fala chega lá após uma jornada de reflexão e diálogo de anos. Sabedoria não acontece por acidente. Um país desenvolvido possui uma população que individualmente tem uma cognição moral mais desenvolvida. Qualidade na cognição moral faz o país desenvolvido e também coloca a pessoa no caminho para uma vida plena. O segredo da felicidade da Suécia, por exemplo, está na cognição bem treinada de cada um.
Uma das coisas que mais me deixam revoltado é que, infelizmente, o nosso sistema educacional não tem por objetivo desenvolver a cognição moral da criança e do adolescente, portanto é muito provável que você não tenha recebido nenhum treinamento para tal. Caso você queira atingir uma vida plena, em sintonia com um dos aspectos mais profundos da natureza humana, dedique energia para o desenvolvimento da cognição moral. Como?
A palavra-chave é profundidade, sair da superficialidade banal que estamos vivendo hoje e fazer uma reflexão profunda e/ou diálogo significativo. Desenvolver a cognição moral significa se aprofundar nas questões importantes. Selecionar um problema significativo, refletir nos diversos aspectos, conversar com pessoas que você respeita, explorar diferentes opções, e, por fim, tomar decisões difíceis com coragem, porém certas. Ao invés de gastar 1 hora em 100 questões diferentes, gastar 100 horas em um problema importante.
No decorrer de meses a anos, você conseguirá enfrentar os desafios da sua vida um de cada vez. Imagine o impacto a longo prazo desta jornada? Faça o teste, selecione um problema que você julgue importante invista o tempo e esforço necessário para chegar a uma decisão e seguir adiante. Com o tempo, você ficara craque!
Para concluir, uma profunda consistência no comportamento moral não acontece por acidente ou naturalmente na sociedade atual, deve ser ativamente desenvolvido. Quanto maior o número de pessoas investindo no próprio desenvolvimento, maior será o efeito sistêmico desta transformação.
Desenvolver sua cognição moral irá trazer consistência entre discurso e ação e causar uma série de consequências positivas que fortalecem sua reputação, as relações sociais e a autoestima. Além disso, desenvolver a sua cognição moral terá um efeito benéfico no desenvolvimento da sua cognição social e emocional também – a ação inicial é individual, porém o efeito posterior é individual e sistêmico. Como diria Michael Jackson, "a transformação começa com a pessoa no espelho". O caminho é difícil, mas acredito que você ficará orgulhosa de si mesmo no final.
No episódio 03, intitulado “O efeito sistêmico de uma jornada individual de crescimento moral”, discuti em mais profundidade o assunto de hoje.
Meu nome é Kald Abdallah, sou paranaense, cresci numa cidade pequena no norte do Paraná chamada Borrazópolis. Eu sou médico formado pela Universidade Estadual de Londrina (minha querida UEL). Fiz residência e doutorado na Faculdade de Medicina da Universidade de São Paulo, pós-doutorado pela Faculdade de Medicina da Universidade de Harvard, em Boston nos EUA. Já trabalhei na prática clínica, como professor de medicina, executivo e pesquisador. Há 23 anos me dedico a pesquisa clínica e desenvolvimento de imunoterapia contra o câncer, nos últimos 17 anos morando e trabalhando aqui nos EUA. Recentemente, comecei um projeto que tem sido uma verdadeira paixão para mim: o Conexão Sapiens – A ciência desvendando você! É um podcast que busca ir além das estórias passageiras, oferecendo uma exploração profunda e duradoura com o objetivo de sintetizar a ciência como forma de apoio da sua jornada de crescimento social, pessoal e cognitivo. Esta síntese é o resultado de mais de 2 décadas de estudo e busca aplicar a ciência de forma sistemática.
Convido você a participar dessa jornada de crescimento social, pessoal e cognitivo comigo! Por favor, divulgue e para ouvir o podcast, acesse uma das plataformas abaixo.