A literatura como um espaço de acolhimento e reflexão para uma mulher em suas jornada para ser escritora
Myriam Scotti* Publicado em 30/12/2025, às 06h00

A autora reflete sobre a pressão social que molda o papel da mulher, destacando a trajetória que a leva a questionar os padrões tradicionais de vida, como casamento e maternidade, que foram impostos a ela desde a infância.
Ela menciona a influência de figuras femininas em sua vida e como a literatura se tornou um espaço de redescoberta e autoconhecimento, permitindo-lhe confrontar suas próprias experiências e expectativas em relação à maternidade e ao casamento.
A escritora enfatiza a importância da escrita como um meio de combate interno e autocompreensão, reconhecendo os desafios de conciliar a maternidade com a criação literária, e busca desenvolver sua voz autêntica através da escrita.
No livro Só garotos, Patti Smith escreve sobre quando ainda era apenas uma menina: “lembro que me senti confinada diante da ideia de que nascemos em um mundo onde tudo já foi mapeado pelos outros antes.” Assim como ela, eu mesma costumava questionar as razões de certos comportamentos serem os únicos aceitáveis, se quisesse, no futuro, ser uma mulher bem-sucedida-respeitada. Soava-me injusto haver apenas uma trilha para se alcançar bons resultados. Feito produto em série, os objetivos: estudar, casar, ter filhos e envelhecer, representava a curva da vida ideal, como se todas as mulheres desejassem as mesmas coisas para si.
Quando li, pela primeira vez, Simone De Beauvoir e despertei para a força da frase sobre nos tornarmos mulheres, minhas certezas foram se diluindo, tal qual substância em água. De lá para cá, as leituras sobre a temática feminina e feminista foram se desdobrando e me desdobrando em tantas, que me surpreendi ao constatar não haver apenas uma única versão de mim mesma. Ora, bem mais simples conviver com a ignorância, com a obscuridade, com o conforto de achar que bastava repetir os exemplos das minhas ancestrais e isso seria viver. Sofrer a epifania foi então, ao mesmo tempo, libertador e cruel. Mais fácil lá na infância quando, embora estranhasse papéis engessados dentro de casa e, vez ou outra, questionasse minha família, a resposta usual “porque é assim que as coisas são desde que o mundo é mundo”, supria-espetava. Mesmo inconformada, guardava-me em silêncio, ciente do meu lugar em casa.
Ao me casar, carreguei comigo todos os ensinamentos de meus pais, de minha avó, bem como de tias-avós, repassados como herança, de geração em geração. Feito cartilha do ABC, aprendi que havia uma maneira de existir dentro do lar para o homem com quem se escolhia selar compromisso; havia um código para ser esposa, o qual, asseguravam-me, evitaria falhas: “Homens precisam de liberdade; homens não gostam de mulheres que reclamam ou adoecem demais; homens não suportam mulheres preguiçosas; homens desejam chegar em casa e encontrar a esposa bonita, cheirosa e bem-humorada; homens gostam de comida caseira, de casa arrumada, de receber os amigos, de apresentar a esposa a pessoas que consideram importantes; homens desejam mulheres que edifiquem o lar, que sejam boas mães para seus filhos e também para eles”.
Essas frases, ressalto, não me foram ditas explicitamente, mas ao longo da minha jornada de menina a mulher, escutando as rodas de conversas das mais experientes da família ou das amigas de minha mãe. Parecia simples: ao seguir seus mandamentos, a vida me sorriria. Portanto, não me recordo de, durante a travessia, me ocorrer dúvidas sobre o próximo passo a ser dado, nem mesmo na hora de escolher a profissão que seguiria. É como se houvesse um projeto completamente pronto e a mim coubesse somente executá-lo. Por isso, nunca sequer cogitei o não-casamento ou a não-maternidade. No entanto, embora eu soubesse de cor como deveria ser para aquele noivo de pé ao meu lado, não havia qualquer garantia de sucesso “até que a morte os separe.” Mas eu era muito jovem, supunha que comigo seria diferente, que eu encontraria a minha própria cartilha, que não precisaria seguir todos os passos, somente alguns que me norteassem. Afinal, eu não seria como aquelas mulheres e meu marido também não seria como aqueles homens. Inventaríamos o nosso jeito de ser família, de ser felizes, de nos blindarmos dos males do mundo, da inveja alheia, das conspirações, das previsões da astrologia, das forças ocultas ou de qualquer outra coisa que nos falhasse como casal. Claro que foi tudo por água abaixo.
Os primeiros anos de casada e a gravidez do primeiro filho me arremessaram para a realidade crua de ser mulher, de ser a responsável pela casa, por gerar a vida, de ser quem renuncia a si mesma em prol do pequeno ser desconhecido, de ser quem ama o marido que se faz sempre ausente, como escreveu Barthes em seus fragmentos, exatamente o que de mim restou depois de me tornar mãe e experimentar cores intensas, que até então nunca desconfiara da existência. A solidão-companhia, a inveja de assistir ao parceiro seguir em frente, sem que tivesse sido afetado pela chegada do filho, o descompromisso, o individualismo, ele próprio: a reprodução de tudo o que prometera não ser. “Volto já” era a frase mais escutada, enquanto eu tentava me recompor.
Então, a redescoberta da literatura aconteceu por causa do vazio, bem como a escrita da prosa e da poesia. Por não encontrar à minha volta algo ou alguém para me identificar, para me compreender, busquei nos livros as respostas para todas as questões que me rondavam, as quais não permitiam que eu seguisse em frente.
Desse jeito, aos poucos, sem apoio das pessoas reais que me cercavam, fui permitindo que as vozes narrativas me carregassem para dentro do mundo da ficção. Para mim, as histórias soavam mais verdadeiras que a realidade à minha volta, onde as mulheres pareciam estar felizes-conformadas com suas escolhas, com as sombras do casamento e da maternidade. Mas elas não me representavam nem me acolhiam. Não à toa, as queixas das personagens se confundiam com as minhas e, assim, entreguei-me completamente à verossimilhança com que a literatura nos presenteia. Longe de achar que ela está serviço de algo, a verdade é que as reflexões advindas das leituras eram incontroláveis e, por isso, impossível não concluir como sendo uma das mais belas oportunidades de se compreender o outro e, no meu caso, de ser compreendida. Ao adentrar no universo literário, pude, enfim, me conceber adequada, pois reconheci em muitas narradoras a mim mesma. Os enredos, um espelho da minha própria vida. Não à toa, escrever meus silêncios se tornou o exercício de autoconhecimento necessário para que eu seguisse meus dias.
Escrever é um tipo de combate. Não com o mundo, mas consigo. E por enfrentar as (infinitas) demandas maternas, ainda que hoje eu tenha um quarto só para mim, como recomenda Virginia Woolf num de seus icônicos ensaios, nem sempre posso ocupá-lo e escrever o quanto gostaria. É necessário muito mais que disciplina para escrever quando se tem crianças ao redor. No entanto, penso que talvez esses tropeços sejam uma forma de me reconciliar com o imperfeito e com a elevada autocrítica que por vezes tenta me sabotar; pois ainda que seja um quase, insisto em querer escrever. Passei a chama essa minha insistência de escrevernar, ou seja, escrever-maternar maternar-escrever, num eterno amálgama, de modo que não escrevo quando quero mas quando é possível.
A escritora e ensaísta Rebecca Solnit, com cuja militância logo me identifiquei, declarou em um de seus livros que “você escreve a partir de quem é, do que é importante para você e de qual é a sua verdadeira voz, deixando para trás todas as vozes falsas e as notas erradas.” Suas palavras soaram para mim como a chancela que eu procurava para não apenas me tornar uma leitora mais disposta a desafios, mas também para que eu inaugurasse uma escrita destemida, deixando a caneta correr mais solta e, dessa maneira, descobrindo meu próprio tom, minha própria voz literária.
*Myriam Scotti é escritora. Nasceu em Manaus, formou-se em direito pela Universidade Federal do Amazonas, é mestre em literatura e crítica literária pela PUC-SP e, desde 2014, dedica-se exclusivamente à escrita literária. Publicou livros infantis, romances e poesia. 'Tudo um pouco mal' é sua estreia no gênero crônicas.
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