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Protagonismo e Negócios: migrantes que empreendem no setor alimentício nas periferias de São Paulo

A ONG Aventura de Construir faz um trabalho fundamental com micro e pequenos empreendedores, inclusive migrantes que empreendem

Livia Picchi* Publicado em 20/05/2024, às 06h00

A ONG Aventura de Construir também faz um importante trabalho com migrantes - Foto: divulgação
A ONG Aventura de Construir também faz um importante trabalho com migrantes - Foto: divulgação

O Brasil é um país de migrantes! É bastante comum encontrar no nosso entorno e em nossas cidades pessoas provenientes de diferentes países. Às vezes, quem migrou foram os pais, os avós ou os bisavós. No fundo, se remontarmos às origens históricas, somos todos migrantes ou descendentes de migrantes. Essa realidade, que pode ser averiguada pela experiência do dia-a-dia, é o espelho de um país de grande mobilidade humana. Famílias, idosos, homens, mulheres, crianças, trabalhadores com e sem emprego perambulam no país em busca de melhores condições de vida, muitas vezes fugindo de situações insustentáveis e de violência social, outras vezes perseguindo um sonho de melhoria de vida, em busca de trabalho ou educação, ou até mesmo por reunião familiar.

Nosso país é um local com tradição no acolhimento a pessoas migrantes e refugiadas. A acolhida a essas populações tornou-se, na atualidade, um relevante desafio em âmbito internacional, haja vista a natureza imprevisível e mista dos fluxos migratórios, bem como seu aumento no mundo todo. As pessoas migrantes e refugiadas muitas vezes chegam sozinhas ou com suas famílias a um novo país, frequentemente sem dominar a língua local, sem recursos materiais e redes de apoio e contato, tendo, muitas das vezes, passado por violações de direitos humanos em seus países de origem ou até mesmo no processo de deslocamento ao país de chegada.

A questão dos fluxos migratórios, especialmente dos venezuelanos, é um desafio. Relatório da Agência da ONU para Refugiados (ACNUR) mostra que cerca de 262,5 mil migrantes e refugiados da Venezuela vivem no Brasil, a quinta maior nação anfitriã destes cidadãos na América Latina. Considerando que de 2020 a 2022, esse fluxo migratório de venezuelanos cresceu 922%, podemos imaginar o impacto que tem esse fluxo de receber e acolher esses migrantes que chegam. Assim, a preocupação com o atendimento e com a proteção desses migrantes e refugiados é tema central para todos nós que trabalhamos com a inclusão produtiva de pessoas em situação de vulnerabilidade social e na garantia de direitos humanos de forma igualitária.

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Neste contexto evidencia-se uma alternativa frente às vulnerabilidades sociais e as dificuldades de inserção no mercado de trabalho formal e da baixa renda dessa população, os pequenos negócios no setor alimentício dentro das periferias do nosso país, que desempenham um papel vital para promover o crescimento econômico inclusivo, o emprego e o trabalho decente bem como impulsionar a produção sustentável e dar ferramentas para a sobrevivência dessa população.

Com negócios geridos e mantidos diariamente por famílias que trabalham juntas por seus sonhos de melhoria de vida e de abertura de novas possibilidades de sobrevivência, o empreendedorismo de base periférica apresenta oportunidades significativas para o acolhimento humano e digno e para garantia de bem-estar social, que perpassa pela inclusão produtiva dessas pessoas nos locais que estão residindo - por escolha ou por necessidade - como forma de consolidar um desenvolvimento socioeconômico dessa população em nosso país.

Em vista dessa realidade, a Aventura de Construir realizou o projeto ProtagonizAqui que teve duração de dois anos, com início em 2022 e finalização em março de 2024, o qual teve como objetivo capacitar migrantes e refugiados venezuelanos que vivem na cidade de São Paulo a empreender no segmento alimentício, com negócios que vão desde a fabricação de pasta de amendoim, até restaurantes típicos venezuelanos que mesclam as tradições de sabores do seu país de origem com a tradição de sabores brasileiros.

O Projeto ProtagonizAqui teve como foco promover formações para desenvolvimento humano, social e econômico, a partir do autoconhecimento, educação financeira, aprendizado gastronômico, gestão e formalização de negócios. Além disso, um dos pontos fundamentais do projeto, que é a marca do trabalho da instituição, foi possibilitar que as pessoas atendidas encontrem a resposta a premente necessidade de se sentir parte, de pertencer, a tal busca constante de vínculo e de identificação com grupos sociais.

Com objetivo de mensurar os impactos causados, com uma metodologia de avaliação de impacto consolidada, a instituição realizou o monitoramento contínuo do desenvolvimento dos migrantes beneficiários do projeto, as quais permitem a compreensão de como esses empreendedores venezuelanos que foram atendidos, capacitados e transformados estão, ou não, cumprindo com os objetivos propostos no projeto, que visa sua inclusão produtiva, seu acolhimento e inserção social, sua sustentabilidade e seu desenvolvimento humano integral. Com a aplicação da pesquisa de linha de base (P1) a intermediária (P2) e a final (P3), os dados mostram que houve uma melhoria substancial em diversas variáveis chave, refletindo o progresso dos indicadores positivos de impacto no público atendido.

Em termos de saúde financeira observa-se que todos os migrantes adquiriram e aplicaram habilidades de controle de gastos e gerenciamento de renda. Destaca-se também a evolução no domínio dos conteúdos e ferramentas tecnológicas, que no

início do projeto muitos beneficiários enfrentavam dificuldades, o que não ocorreu ao término, pois o número diminuiu substancialmente, com menos de 10% dos participantes relatando dificuldades remanescentes. Especificamente em relação ao uso da plataforma Zoom, uma das metas do projeto, concluímos com 87% dos participantes relatando ausência de dificuldades e apenas 13% enfrentando obstáculos mínimos.

Em relação ao envolvimento com diversos stakeholders, 70% dos participantes agora utilizam contatos profissionais para intermediar essas relações, em comparação com os 30% registrados na pesquisa inicial. No que diz respeito aos aspectos ambientais, sociais e de governança (ESG), os resultados são altamente positivos, especialmente no que se refere à reciclagem e à redução do consumo de água, com taxas de 90% e 75%, respectivamente, em comparação com os 25% e 40% iniciais. Além disso, 80% dos participantes reconhecem a importância da formalização, sendo que 70% deles já deram esse passo. Houve também um aumento de 25% na proporção de pessoas responsáveis pela gestão de seus próprios empreendimentos, o que evidencia o fortalecimento do protagonismo, um dos principais pilares da abordagem e metodologia da Aventura de Construir.

A coleta de dados e sua sistematização pode ser um desafio, mas também possui um significado profundo por trás, não é apenas uma atividade, mas sim uma ferramenta poderosa para impulsionar o crescimento desses empreendimentos, mergulhar nas suas nuances e identificar oportunidades de evolução. Desta forma, com a coleta periódica dos dados, analisando e apresentando para cada empreendedor os resultados, tornou-se possível dar suporte às suas necessidades, dificuldades e na tomada de decisões, permitindo um melhor acompanhamento da gestão interna de seus negócios e, sobretudo, ensinando-os o uso dessa ferramenta simples e ágil para medir seus resultados ao longo do tempo.

Por isso acreditamos que através do monitoramento e da avaliação contínua de impacto, levando em consideração o que deve ser medido através de indicadores quantitativos e qualitativos torna-se possível propor correções e consolidar mudanças de rotas nos empreendimentos desses migrantes, crescendo junto com os negócios, fortalecendo suas famílias e comunidades, consolidando redes de cooperação e parcerias, tornando seus negócios sustentáveis e contribuindo ainda mais no ecossistema de impacto no Brasil, com foco na inclusão produtiva dos migrantes e refugiados e seu desenvolvimento humano integral.

*Por Livia Picchi (Gerente Operacional da Aventura de Construir), cientista social graduada pela Universidade Federal de São Paulo, mestre em Relações Internacionais pela Universidade Federal da Paraíba e doutoranda em Ciência Política pela Universidade Federal de São Carlos, e Silvia Caironi (Fundadora e Coordenadora Geral da Aventura de Construir), economista graduada pela Universidade Católica de Milão e mestre em Gerenciamento de Projetos pela George Washington University.