Você se identifica com as frases "não dei conta", "estou na correria", "é muita coisa", "não tive o tempo certo"...Então este texto é parar você
Ligia Kallas* Publicado em 24/10/2024, às 06h00
Este texto era pra ontem. Na verdade, era para o dia 1º do mês, já que sei do compromisso há tempos e a entrega é mensal. Enfim, o texto precisava ser feito, bem como a organização de três eventos, a estruturação de uma nova campanha interna, o lançamento de um livro, a inscrição a um prêmio e outras dezenas de coisas. Os pratinhos, tão magistralmente equilibrados e prontinhos para os malabares. Faltava apenas – um enorme apenas – o malabarista. E adivinha! Pifei.
Venho há meses com uma sensação indiscutível de capacidade e competência, me sentindo uma linha inteira de produção fordista. Observando o funcionamento das coisas ao meu redor, a entrega das pessoas à minha volta, e meu carrinho cheio, com assuntos importantes, urgentes e delicados, me presenteei com uma estrela dourada e, em nenhum momento, achei que não daria conta. Todo mundo dá conta. Abro o Instagram.
São milhares de pessoas que, todos os dias, me mostram que é possível, vale a pena, vamos lá, você consegue, “trabalhe enquanto eles dormem”, mãe de 8 e impecável, virando a noite trabalhando, “nunca foi sorte”... Eu jamais seria a pessoa a não conseguir. Todo mundo dá conta. E todo mundo espera que eu dê. Eu também torço. A certeza da possibilidade (sic) não me preparou, não me deu sustentação para lidar com a concretude de efetivamente realizar tudo que planejei, que esperavam de mim.
Queremos as coisas prontas. Abrimos com um clique; falamos com um clique; estruturamos ideias e conceitos complexos, hoje, com um clique. Não é possível que um ser humano, completo e formado, não entregue, minimamente, tudo o que se espera dele. Em um dia, e considerando apenas suas 16 horas úteis, a grande editora chefe da renomada revista, a CEO da multinacional americana, a influenciadora digital da maternidade são capazes – enquanto maquiadas, penteadas e impecavelmente felizes – de concretizar feitos incríveis e mudar o mundo.
Desculpe (com aspas enormes), mas não consegui. Hoje, percebi que não conseguiria (e acho que, há dias, esse sinal piscava em algum lugar) fazer tanto em tão pouco tempo. E, sozinha, me dei conta de como eu acreditava precisar e conseguir fazer tanto, em tão pouco tempo, porque isso era o mínimo, esperado e a ser feito. Em “Sociedade do Cansaço”, Byung-Chul Han fala da violência da positividade e seus excessos, de informação, de conteúdo, de expectativas. Eu não só esperava essa demanda desumana, mas contava com ela para meu ‘sucesso’.
Fazemos isso todos os dias. Vivemos em um acúmulo surreal de funções e tarefas com a expectativa de ser esse o melhor caminho, mas que não dure nem demore mais do que o tempo do agora. Viemos de uma construção de valorização do tempo para nos tornarmos a sociedade do imediatismo. Falamos sobre a efemeridade da vida e das coisas, mas adotamos a ótica da pressa, do produzir em abundância, de ser e estar em excesso. Observamos a passagem do tempo, mas somos meros espectadores das vivências. Nós nos tornamos acumuladores do agora sem entender e reconhecer o tempo das coisas, das pessoas, dos sistemas. Nós nos tornamos, mais uma vez, parafraseando Han, uma sociedade do desempenho, do poder ilimitado.
Vivemos em uma cultura histórica de proibições, limites e divisões. Fomos moldados por uma estrutura em que cada indivíduo foi feito para exercer seu papel e desenvolver sua existência em um formato muito bem definido. Mas as mudanças – tecnológicas, comportamentais e de autorreconhecimento dos indivíduos – nos apresentam um cenário que não aprendemos a lidar. O desempenho passa a nortear nossas vidas, como se nosso sucesso e satisfação dependessem disso.
Somos algozes da nossa execução. Não temos um juiz externo que nos cobre ou oriente sobre a impotência ou a limitação de nossos super poderes. Ao contrário disso, temos provas – ou ao menos as julgamos assim – diárias de que somos donos de nós mesmos e capazes, assim, de nos levarmos ao extremo necessário. Somos executores de mil tarefas, sem dar atenção e cuidado a nenhuma delas, apenas pelo fato de que queremos e precisamos, ou sentimos que precisamos.
*Ligia Kallas é Head de Marketing da Kallas Mídia OOH