Quando a Liberdade se Torna uma Ilusão: A Luta pelo Direito de Ir e Vir
Victor Vasconcelos* Publicado em 03/08/2024, às 06h00
O direito de ir e vir é uma falácia, em nossa sociedade. O não mais tão jovem jornalista, entediado em seu quarto, diante de uma televisão desligada porque não há nada atraente para assistir e com o computador, igualmente, sem graça, sem trabalho nem fontes de prazer, resolve descer para o pátio de seu prédio. Escolhe uma camisa aleatória, a mesma que estava pendurada no cabide há dias, semanas. Sem se preocupar se ela cheira mal, suor acumulado e poeira do tempo, a veste. Não se preocupa em colocar perfume, pois não imagina que irá encontrar garotas bonitas por quem poderá se interessar ou provocar interesse. Não escova os dentes, pois já o fez depois do almoço e não sente traços de mau hálito. Não calça sapato, não irá a nenhum evento social, muito menos, formal. É um simples e prosaico passeio no pátio do prédio onde mora há sete anos. Nada mais trivial.
O jovem jornalista (sim, vamos tratá-lo por jovem para ajudar na sua autoestima) busca seu celular, companheiro não necessariamente inseparável, mas útil em diversas situações, como esta que estamos narrando. Abre a porta corrediça de seu quarto e vai à sala onde sua mãe está no sofá, celular em mãos, aqui sim um companheiro inseparável, e um bloco com caneta anotando qualquer coisa desconhecida. Se despede da sua companheira de residência, avisa que vai ao pátio e, diante da pergunta do motivo, diz uma resposta qualquer. “Estou sem fazer nada aqui, vou fazer nada lá embaixo”. Abre a porta, dirige-se ao elevador, aperta o botão para chamá-lo, entra e pressiona o famoso P, de pátio. Aguarda alguns breves segundos para que o aparelho se desloque nove andares para baixo e sai. Caminha alguns metros, passa pela porta do hall e sente os primeiros raios do sol inclemente e os primeiros bafejos de vento fresco no rosto. Nosso jovem jornalista está no pátio. O leque de opções do que fazer agora é vasto – pode conversar com os outros moradores, com o zelador ou pode apenas passear, tomar sol, se refrescar.
Mas...
Voltemos a fita alguns minutos. “Abre a porta corrediça de seu quarto e vai à sala onde sua mãe...” Aqui, está bom. É suficiente. Ele não se despede dela, simplesmente. Ele a convida a acompanhá-lo no seu passeio ao pátio. Motivo? Dois. A companhia dela é bastante agradável e a companhia de uma pessoa alta e que ande é necessária. Sim, nosso jovem jornalista não é alto nem anda. Ele é baixo e se desloca em uma cadeira de rodas. Voltemos a fita novamente. Agora, não apenas alguns minutos, e sim, alguns anos. O ainda mais jovem jornalista cadeirante repetia o processo de vestir uma camisa, buscar seu celular, abrir a porta corrediça do quarto, ir à sala e se despedir da mãe e do pai. Chamava o elevador, entrava e buscava um objeto comprido que ele levava consigo para lhe auxiliar no teclado de botões do aparelho. Apertava nosso conhecido P e aguardava o deslocamento. Saía, dirigia alguns metros e passava pela porta do hall, sempre aberta. Sentia os primeiros raios de sol no rosto e os bafejos de vento fresco. Estava no pátio. O que mudou, então, ao voltarmos a fita ao presente?
O que mudou é que o direito de ir e vir, em nossa sociedade, é uma falácia. É facilmente eliminado. Agora, não basta mais somente o objeto comprido que nosso jovem jornalista carrega consigo para alcançar os botões do elevador. A porta do hall não fica mais sempre aberta. Pior. Ela ganhou uma mola de segurança, aqueles troços que se colocam no alto para evitar que ela feche com força e quebre. Ela ganhou um sistema de segurança eletrônica, que nos obriga a apertar um botão para soltá-la e abri-la rapidamente ou teremos de apertá-lo novamente. Segurança. Afinal de contas, moramos em uma sociedade cheia de facções, já dizia uma outra moradora. Nenhuma facção jamais invadiu ou tentou invadir o condomínio. Não importa. Elas existem. O medo existe. O exagero existe. A liberdade deixa de existir. O jornalista de 47 anos, deficiente físico, cadeirante, entediado em seu quarto, precisa alcançar os botões do elevador, em um teclado alto e longe de seus braços curtos, apertar um botão do sistema de segurança eletrônica da porta, ter força para vencer a mola de segurança e só aí poder chegar ao pátio e sentir os primeiros raios do sol inclemente e os primeiros bafejos de vento fresco no rosto. O direito de ir e vir é uma falácia.
*Victor Vasconcelos, jornalista, pessoa com deficiência e editor do blog Sem Barreiras