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A cultura da violência que nos assola: número de internações hospitalares provocadas por armas em crianças de até 14 anos

A colaboradora Erika Tonelli comenta sobre a influência das armas de fogo na violência instaurada no Brasil

Erika Tonelli* Publicado em 05/09/2022, às 08h47

No Brasil, o Estatuto do Desarmamento foi sancionado em 2003.
No Brasil, o Estatuto do Desarmamento foi sancionado em 2003.

Cotidianamente temos recebido informações trágicas relacionadas a utilização de armas de fogo. Mesmo a maioria das notícias serem de fora do país, o que chama mais atenção é a normalização dos casos com crianças menores de 14 anos.

Até voltar a ter sessões exclusivas de armas de “brinquedo” em lojas especializadas tem sido naturalizado, bem como sendo muito consumido por pelos pais e familiares para presentear seus meninos. Apesar de desde o Estatuto do Desarmamento (Lei 10.826/03) há a proibição da fabricação, da venda, da comercialização e da importação de brinquedos, réplicas e simulacros de armas de fogo, que com estas se possam confundir. No entanto, não prevê punições para quem descumprir a norma.

Segundo os dados do UNICEF e Fórum Brasileiro de Segurança Pública, Panorama da violência letal e sexual contra crianças e adolescentes no Brasil 2021, entre 2016 e 2020, nos 18 estados para os quais dispõem-se de dados completos para a série histórica, o número anual de mortes violentas de crianças com idade entre 0 e 4 anos aumentou 27%, enquanto caiu o número de vítimas nas outras faixas etárias. Esse aumento da violência na primeira infância é uma constatação que chama atenção e preocupa.

Ao analisar os dados de acidentes com crianças de 0 a 14 anos de idade, levando em conta a base de dados do DATASUS (Informações de Saúde TABNET), Causas Externas (CID 10), por local de residência e óbitos, chegamos os seguintes números ao compararmos 2018 a 2020:

tabela

Tivemos como aumento percentual nas causas de óbito: armas de fogo (25%), intoxicações (23%), quedas (12%). Os sinistros de trânsito ainda configuram como a forma mais letal de acidentes com crianças menores de 14 anos, mas o aumento nos acidentes envolvendo armas de fogo tem um crescimento exponencial de um ano para outro. Na faixa etária de 10 a 14 anos, se abrirmos esse dado, tivemos um aumento no número de óbitos nos acidentes com armas de fogo de 67%. Claro que ao ver o número geral em si, isso representa um aumento de 5 crianças, o que não significa um número tão expressivo frente a população infantil brasileira.

Mas ao ver os dados apontados pelas duas pesquisas referenciadas acima, aguçou a vontade de pesquisar mais afundo os acidentes envolvendo armas de fogo e crianças menores de 14 anos. Ampliei o espectro da pesquisa do Causas Externa (CID 10), inserindo as categorias Grande grupo de causas externas, diretamente no Tabnet (dados públicos que podem ser acessados no site do Ministério da Saúde): agressões, intervenções legais e operações de guerra,  eventos cuja a intenção é indeterminada, fatores suplementares relacionados a outras causas; e selecionando na categoria causas: projetil de revolver, rifle espingarda armas de fogo de maior tamanho e projéteis de arma de fogo e das NE. Apenas no recorte temporal de março de 2021 a Março de 2022, Morbidade Hospitalar no SUS, por Causas Externas, faixa etária de 0 a 14 anos, chegamos ao número de 128.532 casos de internação relacionados “apenas” por arma de fogo:

tabela

Fonte: Ministério da Saúde - Sistema de Informações Hospitalares do SUS 

Um dado extremamente alarmante quando ampliamos a análise para o impacto social, financeiro e emocial, dessas crianças vítimas de acidentes, bem como de suas famílias. O contexto do aumento da violência e da precarização das condições de vida da população brasileira, impõe uma triste realidade para nossa infância. Muito se tem discutido sobre violência doméstica, sem aprofundar na situação da infância que faz parte desse núcleo familiar. E sem dizer da negligência por parte do Estado em garantir a vida e a proteção de meninas e meninos de situações diárias de violência e violação de direitos. Afinal está em nossa Constituição Federal (1988):

É dever da família, da sociedade e do Estado assegurar à criança e ao adolescente, com absoluta prioridade, o direito à vida, à saúde, à alimentação, à educação, à cultura, ao lazer e à profissionalização, à liberdade, ao respeito, à dignidade e à convivência familiar e comunitária, além de colocá-los a salvo de toda forma de negligência, discriminação, exploração, violência, crueldade e opressão.” – Artigo 227 da Constituição Federal de 1988.

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No Brasil, após grande mobilização da sociedade civil organizada, em 2003 entrou em vigor por meio de lei no dia 22 de dezembro o Estatuto do Desarmamento (Lei nº 10.826/2003). Ele foi sancionado com o objetivo de reduzir a circulação de armas e estabelecer penas mais rigorosas para crimes relacionados a utilização de armas no país.

Foi muito debatido na sociedade, chegou a ser alvo de um referendo em 2005, no qual 63% da população brasileira rejeitou a proibição da comercialização de armas de fogo e munição em território nacional, alterando assim o artigo 35 do Estatuto do Desarmamento.

Quando passamos por uma crise de legitimidade das instituições sociais, políticas e legais (Segurança Pública e Sistema de Justiça), como estamos acometidos desde 2014, o discurso da violência e do ódio tem se sobreposto neste cenário. Ter o porte de arma, seja legal ou ilegal, traz a falsa sensação do poder nas próprias mãos e consigo de “segurança”. Muitas vezes sem compreender que na sua residência e na sua comunidade essa arma possa chegar ao acesso de crianças e adolescentes, para não falar dos criminosos.

Aprofundando no contexto histórico e social, desde 2019, foram ratificadas em torno de 30 normas que:

  • ü abrandaram as exigências para a posse e o porte;
  • ü aumentaram a quantidade de armas e munições que o cidadão pode possuir;
  • ü liberaram o comércio de armas antes restritas às forças de segurança pública;
  • ü dificultaram a fiscalização e o rastreio de balas.

O Estatuto do Desarmamento permanece em vigor, mas parte de suas regras foi afetada pelas recentes medidas presidenciais. Esse é o momento da história nacional com mais armas nas mãos de cidadãos comuns. Segundo dados oficiais:

  • em 2019 e 2020, os brasileiros registraram 320 mil novas armas na Polícia Federal;
  • de 2012 a 2018, o total havia sido de 303 mil.

As autorizações concedidas pelo Exército a caçadores, atiradores esportivos colecionadores de armas (CACs) também bateram recorde no atual governo:

  • 160 mil nos últimos dois anos;
  • 70 mil nos sete anos anteriores.

Entre dezembro de 2018 e dezembro de 2020, o Brasil teve um aumento de 65% no número de posse de armas, de acordo com um levantamento do jornal O Globo, em parceria com os institutos Igarapé e Sou da Paz.

Isso sem contar que em agosto de 2021, foi publicada a instrução normativa 174 que propôs a simplificação dos processos para a posse e o porte e a ampliação do prazo de validade do registro de uma arma para 10 anos.

Outra decisão ampliou a quantidade de munições que podem ser compradas por cidadãos comuns, militares e policiais. O limite aumentou em 12 vezes, saindo de 50 para 600 por ano.

Pelo cenário exposto, com o aumento da posse de arma legal, para além das armas ilegais, infelizmente temos péssimas perspectivas para a infância brasileira, no que se refere a proteção, promoção e garantia dos direitos que constam na Constituição Federal, não só em relação a armas de fogo mas da situação de violência e violações cotidianos que esta geração, ainda com dois anos de pandemia, está sendo formada.

Talvez isso ajude nos ajude à explicar as condições da saúde mental tão abalada de meninos e meninas, dos transtornos de comportamento com o retorno as aulas, aumento do consumo de jogos, séries e filmes violentos, e como o ódio, de acordo com a grande Marilena Chaui: “É a própria sociedade quem alimenta e dá vida ao monstro da tirania”.

*Erika Tonelli é cientista social e especialista em direitos das infâncias.