Parte 2: Neste segundo capítulo do relato sobre a mãe biológica da sua filha Gabi, o colunista Antoune Nakkhle narra o primeiro encontro delas
Antoune Nakkhle* Publicado em 17/01/2024, às 06h00
Já relatei na semana passada o desejo da minha filha de conhecer a mãe biológica e tudo o que aconteceu comigo durante essa procura, que durou três anos. Chegou o dia do encontro das duas.
Eu estava bem nervoso, mas feliz. Imaginei como seria se isso tivesse acontecido comigo. Desse jeito só fiquei no dia da minha formatura na universidade. Quando Gabi entrou no carro, toda arrumada, me contou que estava levando presentes para Roberta (nome fictício):
— Estou levando um perfume que se chama Angel e um cristal, um quartzo branco para ela segurar quando lembrar de mim.
Pronto. Já me emocionei e dei um jeito de engolir o choro que quase saiu com tudo. Afinal, este era o momento dela. Dali a alguns minutos ela conheceria sua origem. E se der errado? Lá vinha novamente a voz do fantasma me pressionar. Para, Antoune, fantasma não existe. Vai logo e acredita, vai dar certo!
Com expressão calma, pergunto, como quem não quer nada:
— Como você está, filha?
— Normal, vou pensar nisso na hora, assim fico calma até chegar lá. E você, papito?
— Feliz por você, filha. Vai realizar um sonho importante. Talvez o maior de todos. Para mim também é importante, minha filha, acredite.
Minha amiga dos momentos mais felizes e decisivos, Sílvia, se encarregou de buscar Roberta e levá-la até a lanchonete onde estávamos aguardando por elas.
Estávamos sentados quando veio uma fome daquelas e Gabi pediu um queijo quente e um refrigerante.
— Bateu a ansiedade! - disse, com seu riso nervoso. Já passa, é só comer um queijo quente.
Saciada a tal fome, Gabi logo avistou a mãe e Sílvia atravessando a rua:
— É ela! É ela!
Em instantes chegaram. Do fundo do salão, vi a mulher vindo ao encontro de minha filha. As duas se olharam profundamente. Tremi. Apresentei uma à outra como se estivesse apresentando duas amigas. Nos sentamos.
— E agora? Não sei o que dizer — manifestou-se Roberta.
— Mas eu sei — disse Gabi, numa enxurrada de emoção, falando enquanto chorava, chorando enquanto falava durante sua catarse. — Eu quero te agradecer por não ter me jogado no lixo. Meu amigo foi encontrado no lixo e isso é muito triste! Você não, você me entregou para uma família maravilhosa onde eu sou muito amada e feliz. Eu respeito seus motivos e não vou te perguntar quais foram para fazer o que fez, mas acima de tudo eu quero te agradecer. Muito, muito obrigada mesmo!
Chorei como nunca, diversas vezes, era uma emoção atrás da outra. Eu era um espectador dessas duas mulheres que proporcionaram para mim a maior felicidade do mundo: ser pai. Ter uma filha tão doce como Gabi, uma filha que entende o amor como poucas pessoas.
Ela entregou os presentes para a mãe biológica, que agradeceu emocionada, chorando sem parar.
O garçom se aproximou para saber se queríamos mais alguma coisa. Voltou para o balcão.
— Terminou? — indagou Roberta.
— Terminei — respondeu Gabi, se recompondo.
— Então eu quero dizer uma coisa: — aproximou o rosto — eu te amo.
— Eu também. Obrigada mais uma vez por isso e por ter vindo até aqui me conhecer.
— Tive meus motivos para fazer o que fiz, mas não quero falar sobre isso, peço que me respeite, por favor.
— Tudo bem, eu entendo.
— Eu preciso te dizer que não me arrependo. Desde que engravidei eu pedi muito a Deus para colocar um anjo na minha vida que cuidasse de você com amor, que tratasse você bem e que fosse de uma família que também te amasse. E um dia ele me atendeu. Esse anjo é o seu pai. Olhe bem para os olhos dele. Olha agora, por favor. Ele tem amor no olhar, no jeito como ele te olha. Repara.
Foram palavras de um amor profundo trocadas por duas mulheres tão importantes para mim. Nem em meus melhores sonhos eu poderia imaginar assistir. Imediatamente me senti imensamente agradecido por tudo.
Essa conversa não foi só choro. Teve conselho também.
Roberta continuou:
— Por tudo o que estamos conversando aqui — e eu estou vendo que você é bem criada e tem tudo para vencer na vida — eu te digo: estude. Estude porque o estudo é a arma mais poderosa que você terá para não deixar ninguém pisar em você apenas por ser uma mulher preta. Eu sou preta como você e sei o que isso significa. Já fui e até hoje sou muito humilhada. Se eu tivesse tido a oportunidade de estudar tenho certeza de que seria diferente.
— Está certo.
— Então cuide desse seu cabelo lindo de mulher preta que você é. Siga as palavras do seu pai, ele sabe o que faz. Sempre cumpriu o que combinou comigo. E eu também cumpri. Só uma pergunta:
— Sua mãe te ama, vocês se dão bem?
— Claro, me ama demais, eu me sinto amada, sabe. Somos unha e carne. Minha mãe, meu pai, todos me amam muito! Até minhas avós que já faleceram me amavam demais. Eu tenho uma família maravilhosa.
— Fico feliz e tranquila. Então, agora nós vamos nos despedir e cada uma vai seguir sua vida. Eu vou em paz e você vai ficar na paz. E Sempre vamos rezar uma pela outra e nos lembrar desse dia tão bonito. Tudo bem?
— Tudo bem. Ah, e sempre que você pensar em mim, segure esse cristal que daqui eu vou sentir.
— Pode deixar. E vou usar esse perfume delicioso que você me deu, para lembrar mais ainda de você.
— Posso ver sua mão de perto? Nossas mãos são parecidas, não acha?!
— Ah, mas a sua é mais bonita, a minha não é bem cuidada como a sua.
— Que nada, é linda! Qual a sua altura?
— Acho que tenho 1,62m, mais ou menos.
— Eu tenho 1,60m. A gente parece da mesma altura.
— Por que vocês não se levantam e ficam do lado uma da outra? —arrisquei.
— É mesmo! — disseram as duas ao mesmo tempo se levantando.
A diferença de altura das duas era mínima.
— Que dia é seu aniversário, Roberta?
— Dia 10 de outubro. E o seu?
Silêncio breve.
— Dia 7 de maio.
— Legal — disse, com a indiferença de quem não se lembrava a data em que deu a luz.
Após tudo conversado e todos recuperados de suas emoções, nos despedimos e ela foi embora. Gabriela ficou parada na calçada observando Roberta se distanciar, conforme caminhava em direção ao metrô. Fiquei assistindo em silêncio. Era a sua genitora que ia embora provavelmente para sempre.
— Podemos ir, pai.
— Como você está? Quer falar ou prefere ficar quieta, com você?
— Não sei explicar, papito... É uma mistura de emoções, sabe?
— Sei, sim, filha. Vamos caminhando até o carro que melhora.
— Mas o que eu mais sinto é alívio, parece que tirei um peso das costas, pai.
— Por que?
— Porque agora eu sei de onde eu vim, entende?
— Sim, entendo. Você não imagina como estou feliz por ter conseguido promover este momento para você.
Levei Gabi para a escola. Nos abraçamos longamente da hora de dar tchau:
— Muito obrigada, papito. Sei que foi muito difícil você encontrá-la e fazer esse encontro acontecer.
— Eu que tenho que te agradecer, minha filha. Hoje você me ensinou o que é amor.
— Te amo.
— Eu também amo você, meu bem.
Leia aqui a primeira parte desta história.
*Antoune Nakkhle é jornalista, assessor de comunicação e imagem e pai da Gabi, de 19 anos. Mulher preta e adotada. Um pai branco de filha preta.
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