A violência contra a mulher só acabará quando ela for desconstruída ainda na formação de meninos e meninas

A cultura machista e os mitos sociais contribuem para a violência contra a mulher, e devem ser combatidos na formação de meninos e meninas

Fernanda Las Casas * Publicado em 10/12/2025, às 06h00

Em 2024 foram registrados 1.492 casos consumados de feminicídios no Brasil. - Foto: Canva Pro

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Nos últimos dias, feminicídios vêm causando comoção nacional, devido à brutalidade dos crimes. Ex-companheiro coloca fogo na casa, mata a mulher e os quatro filhos do casal, com idades entre 1 e sete anos, em Pernambuco.  Duas mulheres foram assassinadas por um colega de trabalho que não aceitava ser chefiado por uma delas. Esses são exemplos da média de quatro feminicídios consumados por dia no país.

Ainda há 15 tentativas de feminicídios diariamente no Brasil, deixando as vítimas com sequelas físicas e emocionais, como é o caso da mulher atropelada e arrastada pelo ex-companheiro, por um quilômetro na Marginal Tietê. Ela teve as pernas amputadas devido à gravidade do acidente e está internada na UTI.

Os 1.492 casos consumados de feminicídios no Brasil em 2024 e o registro do maior número anual (53) do mesmo crime apenas na cidade de São Paulo em 2025, mesmo sem contabilizar os meses de novembro e dezembro, mostram que as leis que endurecem as penas por feminicídio ajudam, mas não são a solução para o combate ao crime. Para diminuir o crescente número de violência contra a mulher e de feminicídios é necessária uma reestruturação cultural que desconstrua a violência na base, desde a formação de meninos e meninas.

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Questões culturais arraigadas, sustentadas por mitos consolidados no imaginário social, contribuem para esse quadro. O mito da virilidade masculina pressupõe que os homens são naturalmente fortes, corajosos e inclinados à violência, e serão socialmente mais valorizados quando apresentam essas características. Do mesmo modo, o mito da maternidade impõe às mulheres uma obrigação de que se mostrem frágeis, dóceis, abnegadas e indefesas. Tais estereótipos acabam por formar padrões sociais rígidos, que produzem consequências graves, como o aumento nos números de encarceramentos masculinos e índices cada vez mais elevados de feminicídios e violência contra a mulher.

Em minha pesquisa para a tese de doutorado em Direito Civil pela USP, que foi editada no livro “Familia: mitos da ancestralidade e crise da maternidade”, eu cheguei a algumas soluções possíveis para a proteção da mulher e prevenção da violência, a médio e longo prazo:

  1. Criminalizar o abandono à gestante: caso não tenhamos um sistema que assegure à mulher que o pai será responsabilizado pela paternagem, as famílias monoparentais continuarão sendo predominantemente lideradas por mulheres, em especial as mulheres pretas e empobrecidas. Essas mães continuarão sofrendo com o descaso moral e social que as deixa vulneráveis a todo o tipo de violência.
  1. Proibir comerciais, filmes, novelas, séries e conteúdo em mídias sociais com conotação misógina e sexista (apenado com multa): a mudança social só pode começar através do controle de um comportamento social. Para haver respeito à dignidade da mulher é necessário que o Estado atue para controlar situações e ações misóginas e sexistas que possam desencadear comportamentos violentos.
  1. Substituir as atuais licença maternidade e paternidade pela “Licença Parental”: tal licença deve ter duração mínima de seis meses, podendo chegar a um ano, período em que existirá a possibilidade da paternagem e da maternagem, simultaneamente e/ou alternadamente. Assim, homens e mulheres poderão utilizar a licença dentro do período, para que a carreira da mulher não seja a única diretamente afetada com o nascimento dos filhos. Essa mudança de conduta possibilita à mulher uma nova forma de exercer a maternidade e assegura maior estabilidade no vínculo laboral, favorecendo tanto trabalhadores quanto empregadores. Essa divisão traz ainda como benefício menor sobrecarga à mulher pela divisão da atividade de cuidado com a criança.
  1. Aumentar o número de creches em todo o território nacional: isso contribui para que mulheres saiam de situações de violência, já que terão uma forma de deixar seus filhos em segurança e poderão retornar ao mercado de trabalho.
  1. Penalizar os empregadores que demitirem mulheres com filhos com idade até 5 anos: a medida deve ser tomada a curto prazo para mudar as estatísticas de desemprego de mulheres. Dados demonstram que 49% das mulheres são demitidas no 1º ano após o nascimento do primeiro filho.
  1. Estabelecer indenização ao cônjuge que se dedicar à atividade de cuidado (mesmo que não seja de forma isolada) por ano de dedicação: o valor deve ser depositado em conta remunerada, desde o início da atividade de cuidado, independentemente de ruptura conjugal. Tal mudança irá gerar uma ruptura de paradigma, para que o cônjuge que se dedica ao lar seja valorizado.
  1. Tornar obrigatórias, nas escolas, aulas que visem a autonomia do indivíduo, como cuidados domésticos e puericultura, além de aulas de economia (básica à avançada), por todo o período escolar: uma mudança comportamental que irá gerar adultos funcionais e levar a uma natural cultura de paternagem, rompendo de vez com os mitos do passado.

 Para que se alcancem resultados concretos, com a mitigação e eventual desaparecimento da violência doméstica, é imprescindível implementar algumas das mudanças sugeridas de modo imediato. Para que se colham resultados duradouros, é necessário reestruturar a cultura, iniciando pela educação básica e pela revisão de legislações de cunho misógino.  Além disso, é preciso refazer os padrões estabelecidos em virtude de gêneros, para que as novas gerações compreendam que todos devem participar e são integralmente responsáveis pelo cuidado das formações familiares. Se a família é a base da sociedade, essa base não pode continuar recaindo exclusivamente sobre a mulher, sem a divisão de tarefas de cuidado. Tem-se que levar em conta, também, que a riqueza seja distribuída de forma justa e solidária, e compartilhada de maneira equitativa.

É essencial enfrentar a violência contra a mulher atacando as causas primárias. Trata-se de um desafio que não pode ser enfrentado com soluções simplistas; contudo, é fundamental que esse enfrentamento seja iniciado imediatamente, para que a “guerra entre sexos” seja finalmente eliminada, e para que a harmonia e a prosperidade sejam garantidas para as próximas gerações.

* Dra. Fernanda Las Casas é advogada e pesquisadora em Direito de Família e Sucessões. Doutora em Direito Civil pela Universidade de São Paulo (USP), Mestra em Função Social do Direito pela Faculdade Autônoma de Direito (FADISP) e Especialista em Direito de Família e Sucessões pela Escola Superior de Advocacia  (ESA/SP). É autora do livro “Família: mitos ancestrais e crise da maternidade”, da Editora Foco, fruto da sua tese de Doutorado pela USP, coautora em 18 livros e Presidente da Comissão Nacional de Pesquisa do Instituto Brasileiro de Direito de Família (IBDFAM).

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