O machismo ainda é uma das grandes causas da violência contra as mulheres no Brasil. E as mulheres que mais sofrem violência são as mulheres pretas
Amanda Sadalla* Publicado em 14/08/2024, às 06h00
Ser mulher no Brasil é encarar diariamente desafios que abrangem diversas formas de exclusão, discriminação e violência. Esses episódios ocorrem em todos os lugares, seja em casa, na internet, nas ruas, no trabalho ou na escola, deixando marcas profundas na vida das vítimas e naqueles ao seu redor.
Segundo dados do 18º Anuário do Fórum Brasileiro de Segurança Pública, publicado em 2024, 4 mulheres morreram por dia no último ano, vítimas de feminicídio. Esse é o maior registro desde a publicação da lei que tipifica o crime. O Brasil também registrou um estupro a cada seis minutos em 2023, sendo mais da metade mulheres negras (52,2%) e com até 13 anos (61,6%).
Em resumo: elas foram mortas e violentadas por serem mulheres, e por serem mulheres negras. Hoje, no aniversário dos 18 anos da Lei Maria da Penha, celebramos avanços, conquistas históricas e marcos legais importantes para proteger mulheres, crianças e adolescentes no Brasil.
No entanto, na prática, enfrentamos desafios significativos para transformar essas leis em ações efetivas. Há uma década, aos 18 anos, iniciei meu comprometimento com esse tema, conduzindo rodas de conversa em escolas com crianças, adolescentes e professores. Posteriormente, passei a liderar a formação de agentes públicos que atuam na linha de frente contra a violência de gênero, como policiais, agentes de saúde, assistentes sociais e conselheiros tutelares.
Atualmente, como diretora executiva da Serenas, uma organização sem fins lucrativos dedicada ao combate das violências de gênero no Brasil, frequentemente me deparo com a pergunta, especialmente de investidores sociais: "Há solução para a violência contra a mulher?"
As violências são intrínsecas às diversas sociedades, motivadas por diversas razões. Não tenho a pretensão de eliminar todas as formas de violência, mas devemos nos questionar sobre a motivação por trás desses atos. Para ilustrar, costumo utilizar um exemplo imaginário: Em um assalto que recuso entregar meu celular e acabo sendo vítima de um ato violento, qual é a motivação? Minha recusa, que desencadeia a fúria do assaltante.
Agora, imagine outra situação: um relacionamento que aparenta ser saudável, mas se transforma em episódios de violência quando expresso meu desejo de voltar a estudar. Qual é a motivação para o crime? O ciúmes excessivo, controle e poder de Pedro, baseados nas expectativas sociais sobre meu papel como mulher. Aqui reside a definição das violências baseadas no gênero: atos causados pelas expectativas sociais sobre o gênero de uma pessoa.
Quando uma mulher não cumpre essas expectativas, o homem, ensinado que tem o controle sobre o corpo e as reações da mulher, utiliza a violência para exercer seu poder. Ao compreendermos as raízes sociais das violências de gênero, percebemos que é uma questão cultural, social e estrutural. Quando reconhecemos que as violências de gênero têm raízes sociais, abrimos as portas para um caminho efetivo de transformação: a educação antissexista, antirracista e voltada à prevenção das violências contra meninas e mulheres.
Um conjunto robusto de evidências demonstra que a educação previne a violência e permite que crianças e adolescentes desenvolvam conhecimentos, atitudes e habilidades apropriadas para a idade, incluindo o respeito aos direitos humanos e à igualdade de gênero. Tendo isso em mente, implementar programas de prevenção e intervenção contra a violência de gênero por meio da educação é um caminho eficaz e necessário para alcançar a igualdade de gênero.
Tendo isso em vista, a Serenas tem apoiado ativamente secretarias de educação na implementação de políticas antissexistas voltadas à prevenção da violência. No entanto, para alcançar uma mudança duradoura, é crucial expandir nossos esforços para influenciar políticas públicas nos níveis executivo e legislativo, garantindo que a prevenção da violência de gênero se torne uma prioridade nas políticas educacionais em todo o país.
E por que uma educação antirracista? Existem diversas formas de ser mulher no mundo, e não podemos ignorar os marcadores sociais que aumentam as chances de sofrer violência e diminuem as oportunidades de receber ajuda. O recorte racial para políticas de gênero é fundamental em um país onde, a cada 7 horas, uma mulher morre vítima de feminicídio, sendo mais de 60% das vítimas mulheres negras. Meninas e mulheres negras, migrantes e refugiadas, mulheres trans e travestis, trabalhadoras do sexo, mulheres em situação de rua, mulheres do campo e da cidade, indígenas e quilombolas, sofrem violências de formas distintas.
Os direitos e políticas devem ser aplicados para todas, reconhecendo suas diferenças, vulnerabilidades e potenciais. E o que, na prática, é uma educação antissexista e voltada à prevenção de violências? É aquela que transcende os estereótipos de gênero, desafiando normas sociais que perpetuam a desigualdade. Envolve o ensino de valores como respeito, igualdade e empatia desde os primeiros anos escolares, promovendo uma consciência crítica sobre as relações de poder entre os gêneros.
Além disso, uma educação antissexista busca desconstruir a cultura do silêncio em torno das violências de gênero, encorajando o diálogo aberto e o apoio mútuo. Concluímos, portanto, que a verdadeira transformação começa nas salas de aula, moldando mentes e corações para construir um futuro onde a equidade seja a norma e a violência de gênero seja uma triste lembrança do passado.
Nossa responsabilidade vai além de acolher sobreviventes; devemos romper com padrões culturais e comportamentos que perpetuam a discriminação de gênero. Somente assim poderemos romper o pacto social de silêncio e conivência que sustenta as violências, construindo um mundo onde todas as mulheres e meninas possam viver livres de medo e violência. A luta pela igualdade de gênero não é apenas uma causa, é um imperativo moral que exige ação coletiva e comprometimento de todos nós, especialmente, das lideranças da educação.
*Amanda Sadalla é cofundadora e diretora executiva da Serenas. Administradora Pública pela FGV/SP e Mestre em Políticas Públicas pela Universidade de Oxford e especialista em prevenção de violência contra meninas e mulheres.