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Para Lulu. Sobre Lulu. Com amor, mamãe

Uma declaração de amor à gatinha Lucy, que morreu este mês

Arbel Griner* Publicado em 29/04/2024, às 10h35

Jazz, Lucy e Douma
Jazz, Lucy e Douma

Lucy chegou em casa num dia de semana. Benja, que lembra de datas como um calendário, diz que foi em 20 de outubro de 2022. Uma quinta-feira, portanto. Ela vinha do lar que a acolhera, depois de adotada de um abrigo, em 2021.

Como na nossa casa já havia um Jazz, gato adotado durante a pandemia, fizemos uma votação e decidimos manter a temática dos estilos musicais. Os felinos calouros, os dois irmãos que adotaríamos agora, se chamariam Samba e Rock. Eram uma fêmea e um macho. Até consideramos manter os nomes que já lhes haviam sido dados na casa de onde vinham, mas não se sabia ao certo quais eram. A senhora que os adotara antes de nós e que agora tinha que abrir mão deles porque se mudava para uma instituição de longa permanência que não os aceitaria, ficava a cada dia com a memória mais comprometida pela doença degenerativa que a acometera, e mudava o nomes dos bichanos com frequência. Nos documentos que herdamos da primeira casa dos gatos, pudemos ver que a cada visita ao veterinário lhes registravam um nome diferente. Maxxi e Sienna foram provavelmente seus nomes no abrigo da SPCA (Society for the Prevention of Cruelty to Animals) de Bucks County, na Pennsylvania. Aparecem nos recibos veterinários também os  nomes Ari e Gabbi e Ollie e Molly.

Lucy, no entanto, nunca chegou a se chamar Samba ou Rock. Antes mesmo de a recebermos, nossa votação caiu por terra. Para as crianças da casa foi demasiado difícil abrir mão dos nomes que queriam dar e que não haviam sido escolhidos na votação. Insistiram em suas predileções, que foram acolhidas. Em vez de Samba e Rock, um gato seria Douma, um demônio charmoso e poderoso, personagem de um animê japonês. A outra, seria Lucy.

Ela chegou acuada, porque Jazz, é claro, resolveu defender seu território com garras e rosnadas. E se precisasse lançar mão ou pata de outras estratégias para deixar claro que a casa e os humanos eram dele, também o faria. Acontece que um conjunto de Jazz às vezes não se forma de imediato, e deixamos os novos integrantes da banda e da casa completamente apartados do felino veterano. Quando entrávamos no quarto em que Lucy e Douma passaram cerca de duas semanas isolados, e ela se percebia conosco e sem o gato de agenda territorialista por perto, pulava no nosso colo e nos lambia. Lucy amava lamber. A ponto de irritar — a pele, inclusive. Era com muito carinho que Lulu retribuía o amor que lhe era oferecido. Ritualizava seu afeto: me acompanha ao banheiro às 6h, depois pedia para que lhe abrisse as persianas para olhar os passarinhos, os esquilos, enfim, o movimento lá fora. Às 7h, vinha acordar Benja, pulando sobre sua cama. Entrava também no banheiro com Anna, cujo intestino costuma funcionar depois do jantar. Durante o horário comercial, disputava a cadeira do escritório com Caio, sempre que ele trabalhava em home office. E quando não… ocupava a cadeira assim mesmo, batendo ponto. Exploradora, ela gostava de  deixar seu cheiro também no brinquedão felino do outro quarto e na minha cama, onde gostava de se deitar contorcendo a cabeça para trás, de um modo tão difícil de descrever quanto de reproduzir. Acomodava-se e, feito isto, girava a cabeça para o lado e, de alguma forma, dava um jeito de encostar a testa no colchão numa espiral.

Lucy
Lucy

O olhar de Lucy era de uma profundidade indescritível. Talvez possa descrevê-lo, aliás, como perfurante. Ela se comunicava com os olhos, expressivos, e fazia questão de que a notássemos. Quando não correspondíamos a seu olhar como esperava, colocava a pata sobre nossa coxa ou rosto pedindo para que a olhássemos, no fundo de sua íris indubitavelmente verde, para entender o que ela queria dizer. Olhar de igual — de quem nos via, mas também de quem se via em nós. De quem sabia dizer com os olhos que queria ser vista. Pêlo rajado de tigresa com cor de raposa. Inteligência de coruja com um pescoço que parecia conseguir girar quase 360 graus. Sagaz, ágil, esperta. Ah, como era esperta! Grande caçadora, uma gata cuidadora, sabia abrir portas. Inclusive a do meu coração. Tamanha era a esperteza de Lucy, que acho que imaginamos que sempre daria um jeito de escapar de qualquer situação de perigo. Não imaginamos que seria acertada por um carro dentro do condomínio. Ela era a rainha da vizinhança. A dona do pedaço. Era também um pedaço rechonchudo do meu afeto.

No último domingo, 14 de abril, perdemos Lucy. O telefone tocou perto das 20h. Seu corpo de pêlo macio e alaranjado foi encontrado sobre o asfalto. O meu número de telefone, bordado em sua coleira rosa-choque.

Esta não é primeira vez que Lucy me faz pensar na morte. Se ela fosse humana, menor de idade, eu, como sua mãe, já somaria uma longa ficha corrida, e provavelmente muitos anos de pena a pagar pelas caças de Lucy. Se os seres que Lucy já caçou fossem humanos, talvez ela fosse considerada uma serial killer (assassina em série). Era exímia caçadora. Tanto que o maior dilema moral que eu julgava enfrentar (e enfrentava) ao deixá-la sair da casa não era ela estar em perigo, mas o perigo que eu permitia se apresentar aos pássaros. Nem o sininho pendurado na coleira, alertando as presas sobre sua presença, a atrapalhava. No meu aniversário, Lucy me trouxe um ratinho de presente. Ainda vivo. Agradeci, enquanto a segurava com uma mão por debaixo do rabo e a outra pela nuca, como sei que não deve ser feito, a chacoalhando como um saleiro, mas com gentileza e sem força, e explicando que aquilo não era um bom presente para uma vegetariana. Implorei que largasse o rato e ela atendeu — talvez assustada; talvez me compreendendo. As caçadas de Lucy eram responsabilidade minha, assim como a opção por deixá-la sair de casa e andar pela vizinhança, mesmo com coleira de identificação e chip subcutâneo para ajudar a localizá-la caso sumisse. No mundo e como intervimos nele, nas instituições que criamos para regular nossas vidas e, teoricamente tornar essas vidas melhores, a responsabilidade e a culpa sobre um passarinho ou um rato mortos recaem sobre mim. A responsabilidade e a culpa pela morte de Lucy, também. É com estas que lido agora.

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Lucy andava de coleira. Mais que um apetrecho, ou um objeto, um atestado de que ela era “de alguém”. Uma propriedade? Sim, talvez. Qualquer argumento a este respeito seria válido. Minha gata. Nossa gata. É assim que ainda falamos dela. Mas era muito mais que isso.

Um dia, neste país de ruas que passam no meio da floresta sem oferecerem infraestruturas alternativas de travessia para os seres que vivem nas árvores, na grama, no campo, atropelei um esquilo preto. Não o vi passar. Só ouvi um barulho forte, mas sem sentir qualquer alteração na direção. Pelo retrovisor, à procura de indícios do que poderia ter sido aquilo, vi os carros atrás de mim desviarem de algo. Vi um rabinho preto e peludo, em um espasmo, tremer no ar. Entendi. Veio o desespero. O choro. A culpa. A impotência. Era um esquilo. Provavelmente não tinha coleira. A coleira dá clareza do que fazer. Alguém humano — não a floresta, o cosmo, a vida, a providência, que seja — perdeu aquela gata. Eu, meu filho, nossa casa, nossa família perdemos aquela gata. Alguém nos deve explicação. Alguém nos deve mais cuidado. A coleira, de certo modo, organiza. Dá a diretriz. Dá a direção. Informa sobre Lucy, sobre quem virá em seu socorro. Mas a coleira que trouxemos para casa, agora já sem Lucy, nos desarrumou. Desarrumou nossa rotina, nossos arranjos, nossos afetos cotidianos. Se ela, tão esperta, foi atropelada, será que devemos deixar Jazz e Douma saírem? Será que ainda devemos deixar Benja pedalar para a escola de bicicleta?

Sentados sobre o meio-fio, entre a rua asfaltada e a grama que agora sustentava o corpo de Lucinha, ligávamos para o veterinário, em busca de um atendimento emergencial. Ao mesmo tempo, chamávamos pelo nome dela e a cutucávamos para ver se voltava a se mover. Confesso que, no início, tive medo de tocá-la. E se estivesse machucada? Será que meu toque a machucaria mais? E se estivesse morta? Que agonia tocar um corpo morto. Mas por quê? Será que releio "Pureza e perigo", da antropóloga Mary Douglas, para tentar entender melhor o que eu temia? Anna a tocou. Chorava. Dizia que ela já estava gelada. Acho que foi isso que me impeliu a tocar em Lucy. Anna teve coragem. Anna nem titubeou. Anna também disse que ela estava gelada, será? Não. Não. Macia. Quente. Estava macia e quente. “Lucy? Lucy?”, eu repetia, enquanto Anna chorava. Será que o garfo que havia caído no chão na noite anterior ou o prato fundo que deixei quebrar na sexta prenunciavam aquele momento? Será que eu podia ter feito algo se conhecesse a superstição ou a inventasse? E se ignorei a superstição e os sinais, será que ainda havia algo a ser feito? Se Lucy fosse humana, a polícia viria e faríamos questão de identificar seu assassino. No caso de uma gata, não há assassino. Não vemos intenção ou irresponsabilidade de dirigir um pouco acima do limite permitido. Falamos em fatalidade. Eu não chamei a polícia. Queira ter chamado o pronto atendimento de um serviço médico de emergência, uma ambulância, mas nada disso há para gatos.

Naquela cena, enquanto perdíamos Lucy, ganhávamos o apoio, afeto e solidariedade de tanta gente. Alguns, desconhecidos, como Tong e Rainy, os vizinhos que foram alertados sobre uma gata deitada no asfalto, que tiraram seu corpo da rua e o colocaram sobre a grama, que assumiram a difícil tarefa de ligaram para nos avisar que Lucy havia sido encontrada e que não estava bem. Rainy, que estava ali no início, repetindo “que tristeza”, não conseguiu ficar conosco e presenciar nossa confusão até finalmente conseguirmos nos organizar e sairmos de lá com Lucy deitada no banco traseiro do carro, a caminho da emergência. Na China, seu país de origem, já tinha presenciado o atropelamento de um de seus gatos, e o novo episódio doía demais testemunhar. Tong, por sua vez, ficou ao nosso lado sem arredar o pé. Esteve conosco e com Lucy, fez-se presente, até sairmos para a emergência. Nos viu chorar, nos viu atônitos, nos viu doídos e não saiu de perto. Permaneceu em silêncio a maior parte do tempo, e vez ou outra repetia: “sinto muito. Que coisa triste.” Rodrigo, Bebel, Mariana e André, os vizinhos conhecidos, conterrâneos brasileiros, correram para nossa casa amparar Benja e Anna e ficar com eles enquanto nos esperavam voltar da emergência. Cheguei com a coleira da Lucy no bolso, e sem a Lucy, e foram eles que me abraçaram e provavelmente saíram da nossa casa, já tarde, de coração pesado; com rebarbas de lágrimas e meleca na roupa. As veterinárias, na emergência de uma equipe exclusivamente feminina, receberam Lucy e tentaram reanimá-la. Tentaram também acalmar nosso aperreio, dizendo que os exames mostravam hemorragia no pulmão, sinal de uma morte instantânea. Trouxeram a gata embrulhada em uma coberta de lã, como uma bebê em uma manta, e nos deixaram a sós com ela para nos despedirmos, para chorarmos, para agradecermos. Àquela altura, "Pureza e perigo" já não fazia mais sentido. Acariciei Lucy sem medo, com gratidão, com amor, com as duas mãos. Teresa, Luna, Letícia, Lari, Debora, Lu, Má, mandaram mensagens e abraços apertados via WhatsApp. Nosso grupo de família fez vibrarem mensagens de apoio e afago o dia todo. Luciana e Itamar trouxeram um bolo para adoçar um tanto os tempos de amargor. É tudo tão triste e é tão bonita a solidariedade e o carinho que recebemos.

Vejo um video de Rita von Hunty sobre a Palestina, sobre genocídio, sobre repressão, opressão, interesses ocultos e mal-ocultados por trás de mortes e movidos pelo capital. Dezenas de milhares de mortos. Crianças, mães… com certeza também gatas e cachorros. Tanta coisa tão horrível que não devia ser. Que não deve. Que pede nossa mobilização, nossa atenção, nossa indignação. Será que ainda devo escrever sobre Lulu e nossa dor privada? Meu luto se apequena. Parece agora um privilégio; uma alienação. Paro. Paro de escrever.

Seria engraçado se Lucy tivesse se chamado Samba ou Rock. Acho que faria sucesso e arrancaria uns sorrisos humanos por aí. Mas Lucy lhe caiu bem. Era uma gata luminosa, de olhos-farol. De acordo com minha mãe, Lucy e os outros gatos da casa vieram para nos humanizar — uma palavra de tantos sentidos possíveis. Acho que, ao usá-la, minha mãe quis dizer que Lucy veio nos afetar; produzir afeto. E produziu.

Os dias têm amanhecido confusos. Em desequilíbrio. Como pode o dia começar sem Lucy aparecer tão logo toca meu despertador? Caminhamos um tanto sem foco, com muita tristeza. Ainda nos incham os olhos ao recebermos o cartão com condolências do veterinário, ou agora mesmo, quando as cinzas de Lucy chegaram, entregues por um serviço de correio expresso. “Desarrumados e deselegantes”, eu disse a uma amiga que perguntou como estávamos. Mas com a casa latejando de afeto. De cuidados redobrados uns com as outras. Contando histórias e buscando fotos de Lucy nos celulares, compartilhando imagens, lembranças, histórias.

Todos compartilhamos a sensação de querer saber o que será que Douma sente. Será que sabe o que houve? Será que pensa que expulsamos sua irmã, a que veio com ele da mesma barriga, do mesmo abrigo, desde sempre? Com perguntar? Como explicar? Como consolar? Outro dia, quando finalmente tirei do carro o saco preto com a manta que havia envolvido Lucy ao dar entrada na emergência e o deixei no chão da lavanderia, Douma deitou-se sobre ele. Chorei. De novo. Quando ele saiu de cima do saco, tirei a manta ali de dentro e a estiquei sobre o chão. Foi lá, sobre a manta, que ele deitou repetidas vezes na semana passada, até o dia em que criei coragem para lavá-la e a colocar de volta na mala do carro, onde costumamos mantê-la. Foi difícil lavar aquela manta. Como segue difícil lavar a roupa de cama do Benja, que ainda deve estar repleta dos pêlos da gata. À minha cabeça voltam os textos do tempo do mestrado em sociologia: a díade e a tríade sobre as quais escreveu Georg Simmel. O mundo que a díade Lucy e Douma (Gabbi e Sienna, Ari e Maxxy, Ollie e Molly) compartilhou. Depois a tríade com Jazz. Nós todos juntos. Nós agora sem ela. Nós com a urna com suas cinzas sobre o balcão, perto do meu quarto, perto do brinquedão, perto do despertador que toca pela manhã.

Lulu linda, espero que tenha sabido e saiba o quanto agradeço por nosso encontro. Sei que se sentiu segura como parte desta família e nesta casa. Ela é, e somos todos, sempre seus.

Com amor, mamãe.

*Arbel Griner mora nos Estados Unidos, é pesquisadora, gateira, mãe e madrasta. Adora música, livros, textos e muitas coisas mais.

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