Uma narrativa nostálgica sobre a infância e os mistérios familiares que cercam o quarto escuro da casa antiga
Pagano* Publicado em 06/05/2025, às 06h00
Era daquelas casas antigas com pé direito alto. Um corredor enorme se iniciava na sala do piano e terminava lá na cozinha, onde tia Zaíra passava seu dia, doceirando. Embora térrea, o retumbar dos enormes sapatos de tio Hormínio ecoavam seus movimentos pela casa, por conta do impenetrável porão que ocupava toda a área inferior. Era possível adivinhar se ele estava na despensa ou no banheiro - seus cômodos preferidos. Eu me fascinava olhando para aqueles sapatos, brilhantes e carrancudos. Pesados. De perto.
Costumava cortar seus cigarros em três pedaços e fumá-los na piteira (não me atrevo a dizer se para economizar saúde ou dinheiro). Normalmente, era na sala da mesa grande. Passava bons momentos por lá, nessa sua atividade só interrompida quando tia Zaíra mandava alto aqueles assobios, em geral relembrando a ele que precisava colocar a quirela e o milho para as galinhas. Obedecendo ao comando, lá iam os sapatos enormes rumo aos grãos e nós, os primos, atrás. Quem sabe ele generosamente nos ofereceria um guaraná tirado do engradado de madeira ao lado do saco de milho?
Para essa viagem, passávamos em frente ao... quarto escuro.
Pois é… o quarto… escuro!
Eram vários os cômodos que se apresentavam ao corredor. O quarto escuro era um deles, bem em frente ao da tia Nina. Somente os deuses, ou alguns deles ao menos, sabiam a razão da proibição: criança não entra no quarto escuro! Aliás, mesmo entre a gente grande, só me lembro de tio Ildefonso (Fonsinho entre os tios), quando vinha lá de São José (dos Campos), entrar no quarto escuro. Até pousava lá.
Como era muito sério, nós, os primos, não nos atrevíamos a perguntar o que tinha lá dentro. Tio Fonso (entre os primos ) era muito alto e parecia com a imagem da nota de mil cruzeiros (as abobrinhas como eram chamadas). A imagem de D. Pedro II, que era mais velho que seu próprio pai, D. Pedro I.
Em uma daquelas vagabundas tardes de férias estávamos na sala do piano, brincando de autorama e tagarelando, tia Zaira na cozinha e tio Hormínio podando seus cigarros na sala da mesa grande, quando Augusto, nosso primo mais velho, lançou no ar a ideia da invasão. Sim! A invasão do quarto escuro. Data memorável, se tornaria uma efeméride familiar. Afinal, já não éramos tão crianças assim, eu completaria onze anos em breve, tínhamos o direito de saber! E a coragem? Quem se atreveria? De nós cinco, apenas Augusto, o autor da ideia, se mostrou disposto, aproveitando a oportunidade para ratificar sua liderança no grupo. Mesmo assim, continuou isolado. Decidido, cabra macho que era, anunciou a decisão de fazer de forma solitária a “Tomada do Quarto Escuro”.
Brigando pelas poucas frestas da porta, observamos Augusto partir rumo a sua conquista. Passou pela sala da mesa grande sem olhar para o tio Hormínio. Parecia bem decidido. Deu uma rápida olhada no quarto de dia Nina e, voltando-se para o quarto escuro, fitou a porta de duas folhas de cima a baixo. Ainda percebi seu olhar de relance em nossa direção.
Inspirou, mão na maçaneta e... tibum! Mergulhou rumo ao desconhecido.
Então...
Essa foi a última vez que vi meu primo Augusto.
PAGANO MMXXIV
*Pagano é Paulo Gama, engenheiro, publicitário, diretor de cinema, plantador de árvores, colecionador de palmeiras e escritor. Autor dos livros Direto da Banheira I e II. Tem 4 filhas e 5 netos. @direto_da_banheira