Gabriela Roberta é caminhoneira desde 2022 e divide com os milhares de seguidores os altos e baixos da profissão considerada “de homem”
Maria Cunha* Publicado em 08/03/2024, às 16h00 - Atualizado às 16h04
Há dois anos, Gabriela Roberta, de 24 anos,mudou a própria vida com uma decisão: desistiu da profissão de operadora de empilhadeira e abraçou o sonho de ser caminhoneira.
Nascida em Sorocaba, no interior de São Paulo, Gabriela tem 32 cursos nas áreas de transporte rodoviário e logística, sendo formada na última. Com a conclusão da faculdade, a motorista iniciou a carreira como empilhadeira e teve, então, mais contato com caminhões.
A relação de Gabriela com veículos de grande porte, no entanto, é de família, pois o avô, o pai e os tios eram motoristas. “Meu pai iniciou no caminhão e depois foi para o ônibus, os meus tios também eram motoristas de ônibus”, explica ela. “Juntei a vontade de seguir os passos do meu pai com aquilo que eu já convivia.”
Apesar de vir de uma família de motoristas, a decisão de abandonar o cargo de operadora de empilhadeira para ser caminhoneira não foi tão fácil. Por ser uma profissão predominantemente masculina, Gabriela temia não conseguir realizar o serviço, além de saber que enfrentaria preconceito.
“No meu primeiro processo seletivo para trabalhar na empilhadeira, só tinha eu de mulher no meio de nove homens e eram dez pessoas para duas vagas. De cara, eu senti um baque, porque quando eu fui selecionada, eu vi muitos olhares estranhos”, diz Gabriela
O preconceito com a profissão de caminhoneira, porém, é ainda maior. De acordo com a motorista carreteira, a falta de estrutura para mulheres ocorre em todos os lugares, desde empresas até postos de gasolina.
“Uma dificuldade que a gente enfrenta é que em muitos postos o banheiro para mulher é algo crítico, é um banheiro de segundo plano”, relata Gabriela. “Também tem empresas muito grandes e conhecidas em que eu tive que tomar banho no banheiro de homem, porque não tinha um banheiro feminino.”
Em outra ocasião, a motorista conta que chegaram a debochar do fato dela e outras caminhoneiras quererem exercer a profissão. “Já aconteceu de a gente chegar e pedir ajuda para um homem, ele olhar para nossa cara e falar: ‘Você não é mulher? Você não quer dirigir caminhão? Então aprende’. Esse é um preconceito muito grande que a gente passa diariamente.”
Mas se a sociedade não apoiou a decisão de Gabriela, dentro de casa foi diferente. Inicialmente, a motorista teve receio de contar ao pai, pois a profissão de operadora de empilhadeira é bem remunerada, tem uma rotina e, muitas vezes, não exige que o funcionário coloque a "mão na massa", diferente da de caminhoneira. Ela relembra a conversa:
Gabriela: Pai, eu preciso conversar com você.
Pai: O quê?
Gabriela: Eu estou com a CNH na mão, tive uma oportunidade [de ser motorista carreteira] e eu estou disposta a pedir as contas na empilhadeira e tentar.
Pai: É isso mesmo que você quer? Vai te deixar feliz?
Gabriela: Vai.
Pai: Então vai. O pai e a mãe estão aqui, você pode contar com a gente e a gente vai estar aqui para sempre com você. O que te fizer feliz, vai nos fazer duas vezes mais.
O incentivo foi determinante para a motorista, que também teve o apoio de toda a família desde o início. “Aquilo me impulsionou de um jeito que, por mais que não desse certo, eu olharia para trás e saberia que tenho a segurança das pessoas que eu mais amo na vida”, conta. “As principais pessoas que me deram aquele empurrãozinho: ‘Vai que eu sei que você consegue’ foram o meu pai e a minha mãe”.
Uma rede de apoio é essencial para as mulheres que desejam ser caminhoneiras e a profissão oportuniza a criação de laços entre as motoristas que estão na estrada. “A gente vai conhecendo pessoas e acaba criando muitas amizades. Hoje eu conheço muitas mulheres na área de transporte, tanto no rodoviário quanto de ônibus."
Um exemplo disso é o grupo de WhatsApp "As motoristinhas" que, segundo Gabriela, reúne mais de 400 mulheres do Brasil inteiro que gostam de caminhão ou que trabalham com transporte. Além disso, através do grupo, as caminhoneiras com mais tempo na carreira se prontificam a ajudar quem quer entrar na área ou quem não tem experiência e está em busca da primeira oportunidade.
O Instagram foi outro espaço em que Gabriela encontrou suporte. Hoje, a caminhoneira divulga a rotina nas estradas na rede social e acumula mais de 18 mil seguidores. “Eu estou em êxtase porque o meu Instagram vem crescendo muito de um tempo para cá. Acho que isso acontece justamente porque eu mostro ali a realidade, eu não maquio nada”, pontua.
Além de produzir conteúdo, a motorista carreteira também recebe muitas mensagens dos usuários, os quais a enxergam como uma inspiração. “Isso para mim é uma uma realização, porque muitas pessoas vêm me contar um pouco da própria história, eu acabo ajudando, eu gosto de ter esse contato.”
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Foi a rede social que, inclusive, a salvou em sua primeira viagem com um caminhão, quando foi para Uberlândia, em Minas Gerais. “A minha carreta deu um problema no freio e eu sem experiência nenhuma, aprendendo ainda, postei na internet. E esse seguidor foi até lá onde eu estava e me levou para uma oficina, me levou até marmita no dia”, relembra.
Os problemas no caminhão e na carreta, no entanto, podem ser mais preocupantes do que se imagina. É no veículo que Gabriela dorme, cozinha, faz refeições e também armazena itens. “Aqui é a minha casa de lata, a minha casa móvel. Tudo está dentro do meu caminhão, minha coberta, minhas roupas, minhas panelas”.
De acordo com ela, o caminhão em que trabalha é bem equipado, tem uma cama bem confortável, uma caixa de cozinha — gaveta com repartições para guardar mantimentos — acoplada na carreta e um suporte de botijão de gás, o qual vai embaixo da carreta e permite a ligação com o pequeno fogão que ela possui.
Apesar dos desafios e obstáculos, é evidente que Gabriela não se arrependeu da escolha que fez há dois anos. “Eu consegui realizar um sonho. Uma frase que eu levo comigo é que ‘Nada é tão nosso quanto os nossos sonhos’. Todas as mulheres deveriam conhecer a força que elas tem. Com um pouquinho de luta, um pouquinho de de suor, a gente consegue. O lugar de mulher é onde ela quiser.”
*Maria Cunha é jornalista e autora do livro "Gestação do Coração - 5 histórias de adoção".
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