Mariana Kotscho
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Em busca do meu eu

Sofrimentos na infância e na adolescência fizeram o jovem Matheus Caseiro olhar para si e transformar seu próprio caminho em busca de equilíbrio

Matheus Caseiro* Publicado em 14/06/2024, às 06h00

Matheus na maratona de Chicago - Foto: arquivo pessoal
Matheus na maratona de Chicago - Foto: arquivo pessoal

Luke Burris em seu livro “Wanting” escreveu: Rene Girard descobriu que não desejamos as coisas através de impulsos biológicos ou através da razão. Também não desejamos coisas em forma de um decreto de nosso eu ilusório e soberano. Segundo Girard, nossos desejos se criam através da imitação. Desejo não significa o impulso por comida, sexo, abrigo ou segurança. Essas coisas são melhor chamadas de necessidades - elas estão embutidas em nossos corpos. Necessidades biológicas não dependem de imitação.

Mas depois de suprirmos nossas necessidades básicas como criaturas, entramos no universo humano do desejo. E saber o que querer é muito mais difícil do que saber o que necessitamos. No universo do desejo, não há hierarquia clara. As pessoas não escolhem objetos de desejo da mesma forma que escolhem usar um casaco no inverno.

Em vez de sinais biológicos internos, temos um tipo diferente de sinal externo que motiva essas escolhas: modelos. Modelos são pessoas ou coisas que nos mostram o que vale a pena desejar. São os modelos - e não nossa análise "objetiva" ou sistema nervoso central - que moldam nossos desejos.

Com esses modelos, as pessoas se envolvem em uma forma secreta e sofisticada de imitação que Girard chamou de mimetismo. Os modelos são os centros gravitacionais ao redor dos quais nossas vidas sociais giram. O desejo mimético atrai as pessoas para coisas. Essa atração, esse movimento é o mimetismo. Ele é para a psicologia o que a gravidade é para a física.

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A gravidade faz com que as pessoas caiam fisicamente no chão. O desejo mimético faz com que as pessoas se apaixonem ou se endividem, ou façam amizades, ou parcerias de negócios. Ou pode sujeitá-las à escravidão degradante de serem meramente um produto de seu meio.

Esse poderia ser um resumo da minha vida. Na verdade, essa ainda é a síntese de inúmeras histórias que ouvimos por aí. É da natureza humana buscar um modelo para seguir. O problema, é qual o modelo estamos seguindo? E para onde iremos se continuarmos o seguindo?

Foram essas as perguntas que me fiz no dia 10 de Agosto de 2010.

Eu tinha 17 anos. Era um daqueles garotos populares na escola, tinha uma família que me amava e cuidava de mim e tocava violão e guitarra em uma banda que formamos no Ensino Médio. Falando assim, parecia que eu tinha a vida perfeita. Parecia que eu era feliz.

Por trás daquele menino popular na escola, estava um homem cheio de inseguranças; escondido da família que tanto doava amor, estava um jovem que já abusava do álcool e que flertava com o cigarro nas madrugadas dos finais de semana; e na sombra de um guitarrista habilidoso, era possível encontrar uma criança que tinha vergonha de si mesmo e que encontrava em um caderno laranja, o lugar perfeito para ser quem ela realmente era.

Esse era o Matheus de 10 de Agosto de 2010. Um menino que nasceu e cresceu em Santos, litoral de São Paulo, e que desde cedo se envolveu com esporte, com música e com arte. Um menino curioso, observador e que adorava ler. Um menino que trocou seus valores e princípios pela popularidade no Ensino Médio e, encontrava nessa atmosfera, um sentimento de pertencimento, de poder e de status que o preenchia com algo que ele nunca havia vivido, mas que o fazia querer mais.

Uma busca ao passado distante

Quando olho para o Matheus criança, consigo enxergar muita pureza, muita curiosidade e uma dose generosa de competitividade. Dose essa, aliás, que fez com que o esporte virasse um hobby, e depois uma obsessão. Aos 3 anos de idade, ingressava no Tae Kwon Do, uma uma arte marcial coreana que combina técnicas de combate, autodefesa, esporte, exercício físico e filosofia. Seu nome pode ser traduzido como "o caminho dos pés e das mãos", refletindo a ênfase nas técnicas de chutes (Tae) e socos (Kwon), além do desenvolvimento do espírito e da mente (Do).

O Tae Kwon Do me apresentou um universo completamente novo, repleto de pessoas de diferentes classes sociais e etárias. Também me mostrou a importância do comprometimento quando se tem um objetivo e a relevância da hierarquia e do respeito. O Tae Kwon Do me ensinou sobre a grandeza da colaboração e que nada no mundo é conquistado sem muita dedicação e trabalho duro.

Mas quando olho para o Matheus criança também consigo enxergar uma outra obsessão: o chocolate, o sorvete e todas as bobagens que podemos incluir em uma dieta não balanceada. É engraçado pensar na dicotomia da minha infância. Enquanto um lado era extremamente focado e obstinado por performance, o outro lado era completamente desregrado e refém da busca instantânea por recompensa.

É exatamente nessa época que minha história começa a se cruzar com a teoria do mimetismo descrita por René Girard. O chocolate era algo que me remetia à quem eu mais admirava nesta época, meu tio de primeiro grau e padrinho, Fernando. Louco por doces, a felicidade dele era me ver lambusado de brigadeiro e com a barriga cheia. Para o Matheus de 8 anos de idade, a felicidade era justamente agradar o primeiro modelo que apareceu em sua vida. E a forma encontrada por aquela criança, foi se apegar aos doces.

Do lado oposto à comilança, estava o Tae Kown Do e o segundo modelo que entrou em minha vida: meu grão mestre Fábio que no dia 09 de Junho de 2001 escreveu para mim as seguintes palavras após uma competição: “Matheus, parabéns pela grande performance. Mas não se esqueça que só conseguimos alcançar nossos objetivos com muito esforço. Abraços.”  Fábio era um homem de coração imenso mas com cabeça de atleta profissional. E a minha resposta à esse estímulo foi entender que eu nunca poderia estar satisfeito com o que eu tinha. Eu sempre poderia (e deveria) me esforçar um pouco mais.

Essa união de modelos criou uma infância alegre, porém confusa. Uma infância que se alimentava de desejos que talvez não fossem do Matheus. Mas uma infância de muita pureza, muito sorriso e rodeada de amor.

O Matheus criança evoluiu da faixa branca para a faixa preta e, aos 13 anos de idade, atingiu o ápice de um esporte que tanto amava. Ao mesmo tempo, lutava constantemente contra a balança, que parecia ser mais volátil que o mercado imobiliário americano durante a crise de 2008. Aquele menino precisou aprender muito cedo a ter responsabilidade, ao mesmo tempo em que trocava o Gatorade após o treino por uma boa fatia de torta holandesa. Pela primeira vez na vida, ele estava mimetizando comportamentos e desejos que talvez não fossem os dele. E aos 13 anos de idade, aquele jovem garoto já não se sentia mais desafiado por aquele esporte que tanto lhe ensinara. Dia após dia foi substituindo os capacetes e o tatame pelas raquetes e pelo saibro. Seu fiel companheiro Tae Kwon Do dava lugar à uma nova paixão, o tênis.

Inspirado por Gustavo Kuerten, Leiton Hewitt, Guillermo Coria e Roger Federer, Matheus jogou em um bom nível por dois anos. Pouco tempo para quem havia se dedicado a um único esporte por 2 terços da sua vida. A competição o fazia suar frio. O medo do fracasso tirava o sono daquele menino que brigava com a balança. E foi quando seus amigos de quadra começaram a treinar pra valer, aos 15 anos de idade, que Matheus começou a flertar com o álcool e ingressou em uma banda de rock.

A jornada para o abismo

Mais uma vez, o mimetismo apareceu na vida daquele já adolescente. O que mudou foram apenas os modelos. Enquanto em sua infância Matheus mimetizava os comportamentos e desejos do seu mestre do Tae Kwon Do e do seu padrinho, na adolescência ele queria ser igual ao Cazuza e aos meninos mais velhos do colegial.

O problema era que isso implicava hábitos e comportamentos que não eram muito promissores. Mas para ser aceito nos novos grupos, aquele Matheus “precisava” agir como eles. A bebida era parte integrante dos encontros aos finais de semana. E o que começou com uma long neck na cozinha do apartamento de seus pais, logo se tornou um engradado, depois outro e por aí vai. O cigarro também surgiu na vida daquele adolescente que, no fundo, sempre buscou ser o centro das atenções. Além de ser extremamente descolado, fumar era quase como um complemento óbvio de toda aquela birita ingerida.

O esporte, que era parte integrante da vida daquele Matheus até então, saiu de cena, dando lugar a vazias tardes de solidão, preenchidas com poemas escritos em um caderno laranja, sorvete de Cookies and Cream e muito violão pelos cômodos de uma casa que testemunhou muita inquietude e assaltos à geladeira. Esse cenário, somado a uma alta predisposição para ganhar peso (e uma eterna luta com a balança), era uma bomba relógio para que, em pouco tempo, aquele adolescente começasse a enfrentar problemas de saúde por conta da obesidade. Mas na cabeça do Matheus adolescente, ele era apenas um menino gordinho e descolado que todo mundo amava.

O tempo foi passando, as biritas ficaram mais frequentes e intensas. O consumo de cigarro aumentou. E os lanches na madrugada pós balada na casa do Matheus adolescente ganharam fama entre os amigos mais próximos. A ideia de ser apenas um gordinho descolado, deu lugar à uma enorme insegurança com a sua aparência. E enquanto seus amigos já flertavam com as meninas da escola, época dos shows de rock e das baladas, o Matheus apenas imaginava o dia que ele teria essa oportunidade. Aos 17 anos, aquele menino estava deprimido, obeso e cheio de traumas que iriam demorar bons anos para serem resolvidos. Esse foi o Matheus que, em 10 de Agosto de 2010, se perguntou sobre os modelos que ele estava seguindo e para onde tudo aquilo o levaria.

Uma mãe preocupada, uma médica provocadora e um menino competitivo

Há tempos preocupada com a saúde seu filho, a mãe daquele Matheus bastante acima do peso, procurou ajuda. Sozinha, ela já não tinha forças para convencê-lo de que uma grande mudança seria necessária. Foi assim que, em 10 de Agosto de 2010, Matheus e Marli entrariam no consultório da Dra. Denise Franco, uma renomada endocrinologista em São Paulo, que atendia na rua Mena Barreto, no miolo do bairro Itaim Bibi.

A consulta começou com um breve bate papo para “quebrar o gelo”. Logo, a conversa avançou para a rotina daquele Matheus obeso, sedentário e descrente do seu problema. Enquanto Matheus falava, a preocupação estampada no rosto da Dra. Denise era nítida. Ela já havia entendido a complexidade.

Conforme a consulta ia avançando, Matheus foi se dando conta de que o buraco que ele havia se enfiado era mais fundo do que imaginava. Sua pressão estava nas alturas. O que ele achava ser apenas uma mancha escura em seu pescoço, era uma acantose nigricans, doença de pele caracterizada por manchas aveludadas e escuras em dobras e vincos do corpo. A acantose normalmente ocorre em pessoas obesas ou diabéticas. E o Matheus que se achava apenas um gordinho descolado, viu a balança mostrar 103,6kg, muito para um menino de 1,75m de altura. Segundo as métricas da World Health Organization (WHO), um IMC (peso corporal em kg dividido pelo quadrado da altura em metros) acima de 30, é considerado de uma pessoa obesa. Matheus estava com um índice na casa dos 33,8.

Enquanto as lágrimas escorriam de seu rosto, aquele jovem ouvia sua mãe e sua médica o consolarem. Ele estava arrasado. Mas ao mesmo tempo que palavras de motivação surgiam naquela sala, algo clicou na cabeça de um Matheus que, até aquele momento, tinha perdido toda sua essência.

E foi limpando as lágrimas que escorriam de seu rosto que Matheus pronunciou no consultório da Dra. Denise a seguinte frase: “A partir de hoje, eu sou um novo Matheus. Vou mudar completamente a minha vida!”. A médica e sua mãe incentivaram mas o advertiram que seria uma longa jornada. No fundo, elas acharam aquela frase apenas um clichê de alguém que estava espantado com tudo que ouvira. Mas para Matheus, aquilo não era um clichê. Era um ponto final naquela vida que trouxe tanto peso (literalmente) para um menino que só queria ser feliz.

A escalada

Ao sair daquele consultório, no fatídico 10 de Agosto de 2010, Matheus havia se transformado. É claro que ainda não fisicamente. Mas em sua cabeça, aqueles 103,6kg já não o pertenciam mais. E foi assim, dia após dia, quilo após quilo, que no primeiro mês, Matheus eliminou 4 kg para sair da casa dos 3 dígitos de peso. O foco e a disciplina voltaram com tudo para a sua vida e, enquanto seus amigos comiam pizza e tomavam cerveja nas noites de quarta-feira, Matheus se contentava com sua sopa de legumes e um copo de água. Olhando assim parece um sacrifício sem tamanho, mas a alegria daquele jovem, ao olhar menos de 100kg na balança, fazia valer cada um desses momentos . Para Matheus não existia um plano B e ele já havia combinado consigo mesmo que só estaria satisfeito quando estivesse magro e saudável.

Junto com a sua completa mudança na alimentação, um velho amigo de Matheus volta à cena: o esporte. E desta vez, inspirado pela sua mãe, o jovem resolveu se aventurar no universo da corrida, que logo tomaria um lugar importante em sua vida. Aquele menino que tinha o Cazuza e os garotos mais velhos do colegial como modelo, havia os trocado por corredores, por pessoas que cuidavam de sua saúde e pela sua mãe. Mais uma vez, René Girard aparece em sua vida, mas desta vez, trazendo um caminho saudável e extremamente promissor. E junto com esses modelos e com o esporte, chegou o fim do segundo mês. Na balança, menos 4kg novamente. Já eram 8kg eliminados e uma nova vida que aquele menino gostava cada dia mais.

corrida
A corrida mudou a vida de Matheus

Porém, na metade do terceiro mês, algo curioso aconteceu. Ao iniciar esse processo, Matheus imaginava que, após eliminar 10kg, o problema estaria resolvido e ele desfilaria magro e esbelto pelas ruas de Santos. O que aconteceu foi um pouco diferente. Quando Matheus eliminou seu décimo quilo, nenhuma mudança muito relevante havia acontecido em seu corpo. Ele ainda estava bastante acima do peso. Ele ainda estava muito longe da imagem de uma pessoa magra que Matheus criara em sua cabeça. Foi um golpe duro! E aquele menino só conseguia se perguntar: “Quantos quilos mais eu vou precisar perder para olhar no espelho e ver um homem magro e esbelto?”

Logo ele descobriria. Foram mais 22kg e mais 3 meses, para Matheus eliminar 32kg no total após 6 meses de muita dedicação. Finalmente Matheus pôde olhar no espelho e enxergar um menino magro, como ele imaginou em todos os dias daquela jornada.

Aquele Matheus sem vontade, triste e inseguro havia ficado para trás. Ele se transformou no homem que vos escreve. Em um ser humano que busca todos os dias gerar um impacto positivo na vida das pessoas através do exemplo e do estilo de vida. O esporte transformou a minha vida. Na verdade, eu gosto de dizer que o esporte me deu uma nova vida. Aquele menino que não conseguia correr 30 minutos em agosto de 2010, corre 42.195 metros na casa das 2 horas e 40 minutos. E muito mais do que o tempo da linha de chegada, o esporte me ensinou sobre valores, performance e sobre disciplina.

Foi através do esporte que eu conheci meus grandes amigos de hoje; foi através do esporte que eu conheci a mulher que eu amo e admiro e que divide a vida comigo; foi através do esporte que mudei minha relação com a vida e passei a amá-la novamente; foi através do esporte que construí uma carreira sólida no mundo corporativo; e foi através do esporte que eu conheci o verdadeiro Matheus, que é muito diferente daquele menino obeso que entrou no consultório da Dra. Denise 14 anos atrás.

Eu acredito no poder da mudança, da transformação, no poder de uma vida saudável e de uma boa auto estima. A minha obsessão pelo chocolate deu lugar à corrida. O álcool e o cigarro foram trocados por um estilo de vida saudável e a insegurança e depressão puderam, finalmente, trazer de volta àquele Matheus puro, curioso e competitivo. Essa é a minha história. E não há nada de heróico nela. O que existiu foi a consciência da necessidade da mudança e a disciplina para executá-la. O que existiu foi o encontro com modelos que me trouxeram força de vontade e um prognóstico positivo. Foi assim comigo e pode ser assim com você. O nosso verdadeiro eu mora dentro de nós (ou nos modelos que estamos seguindo). E nosso papel é encontrá-lo.

matheus caseiro
Matheus Caseiro

Mais um pouco sobre mim

Segundo a Organização Mundial de Saúde (OMS), a obesidade em adultos mais que dobrou desde 1990 e quadruplicou entre adolescentes. Um em cada 5 jovens entre 5 e 19 anos estão obesos hoje. Assustador, né? Essa é uma realidade que precisa mudar. E eu sei como podemos sair dessa.

Muito prazer, eu sou o Matheus. Nascido e criado em Santos, lutei contra a obesidade até meus 17 anos. Através do esporte e de bons exemplos, transformei drasticamente a vida de um garoto inseguro em um homem cheio de ambições e conquistas.

Ingressei no mundo corporativo aos 19 anos, e nos últimos 11 passei por algumas das maiores corporações do mundo, como LG, Mattel, Samsung e Johnson & Johnson. Liderei grandes times e pude transformar, com o que aprendi no esporte, culturas organizacionais para serem direcionadas à performance.

O cuidado com o corpo sempre esteve presente, afinal de contas, eu não aceitaria voltar para aquele antigo Matheus. Mas ao passo que subia na escalada corporativa, a saúde mental era quem eu deixava de lado. Foi então que, esse ano, deixei o mundo corporativo e me juntei a três dos maiores psiquiatras do Brasil para levar uma nova forma de cuidar da mente à todos os brasileiros através do Mindcheck.

Como um apaixonado por histórias, eu compartilho a minha própria para mostrar que é possível um ser humano ordinário, realizar coisas extraordinárias.

*Matheus Caseiro é empresário e tem 31 anos