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Você sabe o que é mutismo seletivo?

Psicóloga clínica explica o transtorno do mutismo seletivo e a importância do diagnóstico

Elisa Neiva Vieira* Publicado em 02/06/2023, às 12h00

O transtorno é habitualmente acompanhado por outras comorbidades
O transtorno é habitualmente acompanhado por outras comorbidades

O Mutismo Seletivo é definido como um transtorno de ansiedade, que afeta crianças a partir dos 3 anos de idade, a principal característica desse transtorno é o fato das pessoas com Mutismo não falarem em ambientes sociais. Mais de 80% dos casos diagnosticados em crianças com este transtorno, apontam a escola como o ambiente de maior recusa na comunicação, enquanto, em suas casas as mesmas crianças permanecem falantes e comunicativas. Porém, nos níveis mais severos do Mutismo Seletivo a criança pode deixar de se comunicar com seus responsáveis e familiares próximos.

Ao nos debruçarmos sobre o transtorno temos a comprovação científica de que ele se caracteriza também por questões genéticas, comportamentais e ambientais. Atualmente, pesquisas científicas apontam que os pais de crianças diagnosticadas com o Mutismo Seletivo tendem a sere pessoas tímidas, introvertidas e com o nível de ansiedade elevado. Além de que, esses pais podem ter experenciado o Mutismo em algum momento de suas vidas, possivelmente até mesmo sem conhecimento próprio.

As crianças com histórico de ansiedade e temperamento mais inibido são propensas a manifestarem o Mutismo Seletivo, segundo o CID 10 ( Classificação Internacional de Doenças) o transtorno é habitualmente acompanhado por outras comorbidades – como ansiedade social, retraimento social, sensibilidade social ou oposição social - acentuados. Mas, o diagnóstico desse transtorno pode ser tardio, uma vez que na maioria dos casos os pais não identificam a questão dentro de casa. Geralmente, até que a criança seja realmente exposta a um ambiente social (como a escola) sua falta de comunicação é vista erroneamente como timidez.

Quando atendi meu primeiro caso de Mutismo Seletivo já havia tido contato com casos semelhantes do transtorno, na Unicamp durante meu período de pós-graduação, mas nunca havia estudado efetivamente o MS. Recebi os pais da minha primeira paciente no consultório, eles me trouxeram o diagnóstico e eu disse que poderia tentar realizar o atendimento e que daria o meu melhor, aceitar esse desafio foi muito marcante, significativo e até mesmo decisivo para que eu pudesse optar por dedicar meus estudos e especializações ao Mutismo.

Naquela época, não tínhamos acesso à Internet com facilidade e entrar em contato com profissionais que trabalhassem na área era muito difícil. Como o termo “Mutismo Seletivo” não aparecia em buscas de pesquisas, foi com muita persistência que cheguei ao nome da

Dra. Elisa Shipon-Blum, uma das pioneiras no tratamento do Mutismo Seletivo no mundo. A confiança que os pais da minha paciente tiveram em mim foi decisiva para o tratamento transcorrer bem e hoje sei que minha Ex paciente é uma mulher que venceu e superou o MS há muitos anos.

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Nesse sentido, acredito que o MS sempre foi extremamente subdiagnosticado, uma vez que o conhecimento sobre o transtorno é demasiadamente vago. Entretanto, campanhas de conscientização atuais têm feito com que ele seja mais conhecido no Brasil e no mundo, proporcionando um maior número de diagnósticos , principalmente de forma precoce, o que favorece o tratamento. Assim, quanto mais cedo a criança for tratada maiores serão as chances de superação do transtorno, pois o comportamento silencioso advindo do Mutismo Seletivo não será tão reforçado em comparação com os diagnósticos tardios.

É importante também ressaltar que o MS pode apresentar níveis de intensidade, o mais severo desses níveis seria a criança que não se comunica em nenhum lugar e com ninguém fora de seu ambiente de pertencimento, tendo dificuldade para movimentar seu corpo e não conseguindo sinalizar seus desejos de forma alguma – neste nível estamos falando de uma criança totalmente “congelada” (frozen, palavra traduzida do inglês e utilizada em referência ao transtorno). Nos níveis subsequentes do transtorno a criança pode usar gestos singelos como apontar para aquilo que deseja, sussurrar no ouvido de seus responsáveis ou pessoas de sua confiança, por isso a importância do tratamento, até que se chegue à fase da comunicação total.

Como já comentado, nota-se que os quadros de Mutismo Seletivo podem estrar associados a diferentes comorbidades, tais como depressão, transtorno obsessivo compulsivo, distúrbios da fala, transtorno do processo sensorial e TEA (Transtorno do Espectro Autista). Porém, é de suma importância que o Mutismo não seja confundido com o Autismo, embora ambos os transtornos possam ser concomitantes, seus diagnósticos são diferentes e um tratamento inadequado decorrente dessa confusão ou incerteza diagnóstica pode trazer graves consequências aos pacientes.

O tratamento do Mutismo Seletivo está, normalmente, baseado na Terapia Cognitivo Comportamental aliado, ou não, a terapias medicamentosas. Para o bom andamento desse processo é necessário que o profissional tenha expertise no tratamento do transtorno específico, conheça o Mutismo e as formas de manejo clínico. Além disso, o tratamento deve ser definido conforme a individualidade de cada paciente, nesse sentido, caso seja identificada a necessidade, deve ser considerada a participação de outros profissionais – a exemplo de fonoaudiólogos, psiquiatras, terapeutas ocupacionais entre outros – compondo uma equipe de tratamento.

O tratamento deve ser estendido para toda a família - que deve ser orientada em relação ao seu comportamento com a criança. É necessária uma readequação comportamental para que os responsáveis possam ter manejo adequado de cada situação vivenciada pela criança que apresenta o transtorno, incentivando sempre a superação dos desafios. A Psicoeducação familiar é fundamental no tratamento, sendo um ponto discutido por pesquisadores há anos e aprimorado constantemente.

Os tratamentos intensivos, individuais ou em grupo, também são uma excelente opção para os pacientes e suas famílias, esse tratamento permite uma troca de experiencia entre responsáveis e apresenta as crianças a identificação com o próximo, que podem até mesmo apresentar níveis diferentes do Mutismo Seletivo. Este tipo de trabalho contribui para o fortalecimento tanto da criança quanto dos familiares.

Particularmente, seria muito difícil eleger um caso ou paciente que mais marcou sensivelmente minha vida profissional, ao longo desses 26 anos de trabalho dedicado ao Mutismo Seletivo. Porém, o que certamente posso dizer é que meu maior aprendizado em relação ao tratamento e tudo o que sei referente ao Mutismo veio dos meus próprios pacientes e seus pais, cada um se apresentou para mim como um livro inédito, com fontes e referências diferenciadas, mas que levam ao mesmo caminho: A superação.

Cada paciente é único e merece um tratamento desenhado especialmente para ele, assim, acredito que hoje tenho um compêndio – um tratado – sobre Mutismo Seletivo, escrito por várias mãos e diversas vidas. Dessa forma, se deu meu crescimentos profissional, com muitos desafios e conquistas. Aliado à felicidade de ver meus pacientes se superarem a cada dia ou integralmente.

*Elisa Neiva Vieira é psicóloga clínica, fundadora e diretora do Instituto Mutismo Seletivo Brasil, mestranda em Psicologia pelo LAMP PUC-Campinas e Coordenadora Internacional no Brasil da ‘Selective Mutism Association’ (Associação de Mutismo Seletivo).