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Como o cérebro lida com o inesperado?

O médico Guilherme de Abreu traz uma análise dos aspectos comportamentais e dos mecanismos neurológicos de situações adversas, como lidar com o inesperado

Guilherme de Abreu* Publicado em 26/12/2024, às 06h00

Entenda o cérebro
Entenda o cérebro

Há cerca de duas semanas, a internet foi tomada por mais um daqueles episódios que costumamos chamar de “virais”. Foi o caso de uma criança que queria ocupar um assento específico num voo e, para tanto, uma outra pessoa teria de ceder seu assento. Com a recusa, a criança começou uma birra e, uma terceira pessoa, decidiu intervir na situação. O caso se desdobrou em uma série de eventos, de certa forma desproporcional, ganhando grande repercussão nas redes sociais e em outras mídias.

O objetivo aqui não é discutir o incidente em si, mas usá-lo como contexto para uma análise dos aspectos comportamentais e dos mecanismos neurológicos envolvidos em situações como essa. A partir desse evento, podemos extrair insights valiosos sobre o funcionamento do cérebro humano e sobre como as competências emocionais se desenvolvem ao longo da vida, desde a infância até a idade adulta. Em especial, em momentos de estresse e conflito, nosso cérebro utiliza sistemas de comunicação interna que visam, fundamentalmente, a nossa sobrevivência. No entanto, veremos também como uma de nossas maiores vantagens evolutivas transforma as respostas instintivas iniciais em abordagens mais analíticas.

A primeira etapa de nossa resposta a situações inesperadas envolve uma pequena estrutura cerebral chamada amígdala (diferente daquela localizada na garganta). É a amígdala que detecta ameaças e desencadeia reações rápidas de sobrevivência. O conhecido “lutar ou fugir” simplifica essa resposta, envolvendo a liberação de adrenalina e outras substâncias do estresse, que tornam nosso organismo mais reativo e propenso a expressar emoções mais primitivas. Essa estrutura também é especialista em interpretar expressões faciais, facilitando o reconhecimento das emoções nas outras pessoas. Além disso, a amígdala se conecta a duas áreas cerebrais responsáveis pela memória: enquanto uma registra o contexto da memória, a outra grava de modo duradouro as emoções associadas àquela experiência.

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Após essa etapa inicial de reação emocional, entra em ação uma segunda fase, mais racional, em que o córtex pré-frontal analisa a situação de maneira mais detalhada e modula nossas respostas. É nessa etapa que expressamos nossa personalidade, armazenamos temporariamente informações e descartamos aquelas que são irrelevantes. Isso nos permite interpretar verdadeiramente as emoções e intenções dos outros, aspectos fundamentais para as relações sociais.

As crianças, que ainda não têm essas estruturas e conexões cerebrais plenamente desenvolvidas, reagem ao inesperado ou ao indesejado de maneira mais primitiva e tendem a não manejar suas emoções de forma tranquila e racional. Justamente por características como essas, criar e educar filhos não é uma tarefa simples. A educação é um processo lento, e simplificar a complexidade desse contexto, inferindo que uma criança em crise de temperamento é necessariamente mimada e birrenta a partir de uma leitura de eventos isolados, é desconsiderar a visão do todo.

Mais da metade das crianças de 2 a 3 anos de idade têm episódios de birra semanalmente, a maioria dos quais tende a durar menos de 5 minutos, especialmente aquelas de grande expressão física, como se debater ou se jogar ao chão. As crianças que frequentemente têm birras prolongadas podem ter outros aspectos emocionais a serem considerados. A maioria das crianças começa a controlar melhor o temperamento a partir dos 4 anos de vida, mas fatores como estilo de criação, qualidade do sono, temperamento familiar, fatores ambientais (como estar em um avião) ou a presença de outros diagnósticos podem aumentar o risco de crises mais frequentes e duradouras.

Lidar com birras é um dos maiores desafios da parentalidade. Uma das principais tarefas ao lidar com crianças é estabelecer limites. Limites nos conectam com nossos valores e crenças, com o modelo de educação que consideramos mais adequado. Crianças precisam de limites, e quando eles não estão bem definidos, as crianças reagem com estresse e insegurança. Do ponto de vista da pediatria, lidar com o problema das birras envolve várias estratégias:

  • Diagnóstico claro: Determinar se as birras estão dentro da faixa etária aceitável ou se são decorrentes de questões de temperamento ou atrasos no desenvolvimento emocional.
  • Atenção a fatores adicionais: Considerar fatores que podem dificultar a expressão mais aceitável das emoções, como atrasos na fala, ansiedade ou depressão.
  • Educação parental: Ensinar os pais a lidar com birras, oferecendo ferramentas apropriadas para cada situação, como estabelecer rotinas, prever cenários e permitir que a criança faça escolhas entre poucas opções viáveis.
  • Consistência no "Não": Escolher cuidadosamente quando dizer "não". Muitas vezes, um "não" inicial é revertido em um "sim" após uma birra, reforçando à criança que essa estratégia é válida e eficaz.
  • Ignorar quando seguro: Se possível e seguro, ignorar a birra pode enfraquecê-la.
  • Manter a calma: Demonstrar um comportamento racional, mesmo em situações estressantes, é um excelente exemplo para a criança.
  • Evitar compensações: Não oferecer recompensas para minimizar o impacto de a vontade da criança não ter sido atendida.

Outro aspecto fundamental da parentalidade é a conexão emocional com os filhos. Emoções nos conectam com outras pessoas. A validação das emoções é uma grande parte da empatia e uma ferramenta importante para criar crianças seguras e confiantes. Validar as emoções das crianças, no entanto, não implica aceitar seu comportamento. A birra não é a emoção em si, mas sua manifestação.

Na teoria do desenvolvimento de Erik Erikson, o ser humano se desenvolve através de oito estágios, cada um caracterizado por uma crise psicossocial que precisa ser resolvida para o avanço saudável ao próximo estágio. Crianças de 3 a 5 anos são encorajadas a ganhar autonomia em várias áreas, mas se suas iniciativas forem constantemente frustradas ou punidas, podem desenvolver sentimentos de culpa e inadequação.

A maneira como pais e cuidadores lidam com a birra pode influenciar o desenvolvimento da criança em relação à crise psicossocial deste estágio. Responder de forma a validar a iniciativa da criança, enquanto se estabelecem limites claros, ensina que é permitido ter desejos e tomar iniciativas, mas dentro de um contexto socialmente aceitável. O comportamento da criança não deve interferir nos limites pré-estabelecidos, e é aí que entra a validação dos sentimentos, mesmo que a expressão desses sentimentos não tenha sido a melhor.

É assim que funciona no mundo real. Os limites estabelecidos pela sociedade permanecem, independentemente dos sentimentos pessoais em relação a eles. Para que as crianças se tornem adultos melhores, precisam praticar esses comportamentos na infância, incluindo lidar com situações que não atendem suas expectativas ou preferências.

*Guilherme de Abreu é médico, pediatra e neonatologista, graduado pela Universidade de São Paulo. Trago comigo mais de quinze anos de experiência clínica e em pesquisa, tendo sido treinado em instituições renomadas no Brasil e no exterior. Atua principalmente no cuidado pediátrico e de crianças com transtornos do desenvolvimento, com especialização na área de Desenvolvimento & Comportanneto Infantil em Cleveland - EUA.