Nesta coluna, o escritor Plínio Camillo abre espaço para escritoras negras e escritores pretos que aqui também publicam seus textos, como este sobre painho
Ana Paula Campos* Publicado em 06/02/2024, às 06h00
Conheço meu pai há 42 anos. Conhecer é modo de dizer. Acho que até tenho consciência de algumas características dele, mas conhecer, conhecer mesmo, só há dias.
Tudo aconteceu quando eu estava lendo a obra “Serei sempre teu abrigo”, de Valter Hugo Mãe. Um livrinho pequeno, narrado por uma voz infantil, o que lhe confere inocência, mas grande sabedoria. Algumas pessoas podem pensar que quando se trata de crianças, não existe uma reflexão mais ampla sobre as coisas. Enganam-se. Justamente por serem crianças, conseguem olhar e ver. Observam uma coisa ou uma pessoa e veem além, descrevendo-as com olhar poético.
Bem, não sou mais criança e quando ainda o era, perdi em algum lugar minhas percepções sobre meu pai. Mas a criança do livro de Hugo ajudou-me a entender quem ele é de fato. Seja como for, para entender meu pai, precisei, antes, entender quem foi minha mãe.
Minha mãe era como a avó da narradora-criança. Alguém divertido, encantadora e inquieta diante das descobertas da vida. Assim como a minha mãe, ela tinha alguns problemas de saúde que exigiu um cuidado maior por parte do avô; no meu caso, foi painho.
O avô da menina tinha um coração mecânico, mas não como o da avó que tinha uma máquina lá dentro. Era aquele coração prático, descrito de uma forma que só uma criança consegue ver. Meu pai também tem um coração mecânico. Ele é prático na vida. Aquela pessoa que sorri pouco, porque não tem tempo a perder com essas firulas, uma vez que está sempre muito ocupado cuidado do bem-estar de todas da casa. As filhas. Muitas. E mais um filho e netos. Muitos. É uma trabalheira.
Acorda cedo e anda sisudo pela casa, procurando solução para tudo, ou até mesmo se antecipando aos problemas. Quando minha mãe ainda era viva, não lhe faltava nada. Quando a mãe dela era viva, também. O coração mecânico de painho trabalhava incansavelmente para deixar tudo em ordem.
Mas faltou energia na máquina do coração da minha mãe e ele desligou. A máquina do coração de vovó também estava gasta e um dia parou de funcionar. A máquina do coração de painho começou então a bater mais lentamente, em uma batida triste e saudosa. Mas batia...
Um dia, minha filha, sua neta Giovana, nasceu. Era tanto amor entre os dois que seu coração até pareceu que ganhou um motor novinho em folha. Batia forte, acelerado; era tanto batuque que por pouco ele não deixou escapar um sorriso largo. Caramba, que descuido! Rapidamente recuperou as rédeas da situação e voltou a sua rotina normal: deixar tudo em ordem, atendendo a todas as necessidades do seu novo amor.
Painho, assim como os avós da menina, é nosso abrigo. Nosso porto seguro para dias de tempestade e escuridão. Ele nos mostra o caminho, adverte-nos sobre os percalços da estrada e nos aconselha baseando-se em suas próprias experiências.
Às vezes ele mexe na programação do seu coração. Exige demais de uma máquina que já está em funcionamento há muito tempo e requer paciência. Essa cobrança para ser sempre nosso melhor lugar no mundo faz seu coração ranger um pouco. Se a gente faz silêncio, consegue ouvir até alguns pequenos soluços.
O que ele não sabe é que sendo ele do jeitinho que é, sempre foi e para sempre será nosso abrigo. O melhor abrigo do mundo!
Painho, quantas vidas eu tiver, quero sempre voltar como sua filha.
NOTAS DE ESCURECIMENTO: Por gentileza, se apresente
ANA PAULA CAMPOS: Mulher cis, negra, gorda, indígena Potiguara, cigana Calon, mãe atípica, candomblecista, juremeira, professora da rede pública há 20 anos, pesquisadora orgânica, contadora de histórias, artesã e dançarina.
NE: Como é você leitora?
APC: Leio desde criança, então, hoje, sou uma leitora autônoma. Leio por estudo ou só por lazer, mas sempre com prazer. Quando começo a leitura de um livro, vou até o fim, mesmo que não goste, para poder falar mal depois. Gosto de ler mais de um livro por vez. Adoro romances, biografias e contos, mas aprendi a gostar de crônicas e poesias. Não deixo de ler um autore porque não é racializado, mas sou seletiva. Enquanto leio, procuro aprender a escrever com quem admiro.
NE: Como foi e é para você a publicação do Livro?
APC: Sempre uma luta. O mercado editorial é uma guerra de narrativas. Tenho um livro publicado por uma editora da minha cidade, mas foram anos em banho-maria até sair o livro, sendo campeã de vendas na FLIC 2022. Hoje, não fico mais refém de editoras. Sendo servidora pública, consigo me organizar e publicar de forma independente, fazendo minha própria divulgação, mas compreendo que isso ainda não é uma oportunidade geral.
NE: Para que você escreve?
APC: Para curar a dor! No começo, eu não me via como escritora. Escrevia como forma de desabafar o que sentia. Depois compreendi que minhas reflexões ajudam outras pessoas. Mais tarde entendi que não sou feita apenas de dor e passei a escrever sobre amores, sempre com as lutas presentes, porque o racismo não dá trégua.
NE: Quais suas negras influencias?
APC: Geni Guimarães, Cristiane Sobral, Upile Chisala, Rupi Kaur,Nei Lopes, Calila das Mercês, Lubi Prates, Toni Morrison, Cidinha da Silva, Nêgo Bispo, Chinua Achebe, Solano Trindade, Anajara Tavares, Davi Nunes, Françoise Ega, Alice Walker, Miriam Alves, Cuti e tantos outres.
NE: Qual foi o seu primeiro e decisivo ato literário?
APC: Penso que cada obra teve sua importância. O livro “Crônicas para acordar a Casa-Grande, publicado em 2022, trazia minhas primeiras reflexões sobre ser uma mulher negra. Forjadas na dor, livro de contos, carregava as dores e superações de todas as Anas que habitam em mim e em Vesti-me de amor, fiz as pazes com a poesia e com minhas múltiplas identidades.
NE: Conceição Evaristo cunhou um termo escrevivência. O termo aponta para uma dupla dimensão: é a vida que se escreve na vivência de cada pessoa, assim como cada um escreve o mundo que enfrenta. Essa ideia se faz letras em seus escritos?
APC: Sempre escrevi sobre o que penso, o que sinto e o que dói. Todas as minhas vivências estão em todos os meus livros. Às vezes penso em editar minhas falas porque já não sou mais aquela, mas depois lembro que aquela escrita é um registro de um momento que passou, mas me fez ser quem sou hoje.
NE: Como é você sendo ancestral em seus escritos?
APC: Uma mulher em construção que respeita seu momento e não carrega culpa pelos equívocos do passado. Essa mulher estava tentando sobreviver e ainda está.
NE: Cuti afirma que a LITERATURA NEGRO-BRASILEIRA, além do negro em primeira pessoa, também prepara o leitor negro. Como tem sida a sua preparação?
APC: Cuti é um dos grandes amores da minha vida. Que escrita! Em cada livro que leio de um autore negre, me vejo em cada palavra. Suas obras me fortalecem, ensinam-me e dizem o tempo todo que eu não estou só.
NE: Como é, para você, ser uma escritora negra no Brasil?
APC: Eu iria além. Ser uma escritora negra, que não vive no eixo Rio-São Paulo e vive em uma cidade pequena e provinciana. É muito difícil! O fator raça, somado ao geográfico, potencializa as dificuldades. Mas como somos quilombo, contamos com o apoio de outres escritores de vários lugares do país que me apoiam, ensinam e incentivam.
NE: Inspiração ou transpiração?
APC: Os dois! A gente se inspira nos mais velhes e transpira outras letras que, esperamos, inspirem as mais jovens.
NE: Quais são os seus principais temas?
APC: Todas as questões que me atravessam estão em meus livros: racismo, racismo religioso, maternidade, identidades, relacionamento familiar e amoroso, espiritualidade e assim por diante.
NE: Qual é o seu processo de escrita?
APC: Eu sinto, depois é que vem a vontade de colocar isso no papel. Não penso, escrevo! Depois, com base em leituras e cursos de escrita, avalio com criticidade, mas respeito o que escrevi. Algumas vezes é tanta dor que só consigo fazer um registro por dia. Não me obrigo a escrever todos os dias, mas quando o desejo vem, posso estar onde estiver, faço nem que seja uma nota no celular.
NE: Para quem você escreve?
APC: Primeiramente para pessoas negras, porque em meus livros estão nossas dores, vitórias e amores, mas também escrevo para pessoas brancas, para que se vejam nos relatos e reconheçam suas ações ou de seus antepassados. De alguma forma, pessoas brancas também se identificam quanto ao empoderamento, à maternidade, a relações afetivas, espiritualidade e outras questões.
NE: Qual a função social da sua literatura?
APC: Educar e acolher. Eu, de fato, acredito que a literatura, além de ser uma forma de sentir e viver o mundo, é fonte de informação e conhecimento. A gente aprende com as experiências das outras pessoas e compreende que não está só.
NE: Quando se descobriu negra?
APC: Depois dos 30 anos e ainda estou em processo. Cabelo, vestimentas, movimentos políticos, espiritualidade, busca pelos nossos ancestrais, História da África. As descobertas são constantes.
Contatos de Ana Paula Campos
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@esmeralda.baralhocigano
* Esta coluna de Plínio Camillo é publicada às terças-feiras aqui neste site marianakotscho
