A polêmica em torno do aborto e o direito de mulheres sobre o próprio corpo
Maíra Beauchamp Salomi* Publicado em 17/01/2025, às 06h00
A temática do aborto é e sempre será polêmica no Brasil e no mundo. Alguns se dizem a favor da vida, posicionando-se contrariamente a qualquer ato atentatório ao feto, por vezes sem considerar sua viabilidade ou mesmo as circunstâncias que originaram a gestação, outros colocam-se ao lado das mulheres e de sua autonomia decisória, defendendo o seu poder de escolher seguir ou não com a gestação, sobretudo nos casos já permitidos por lei.
Os debates ideológicos que circundam questões morais, religiosas, éticas e filosóficas, seguirão ainda por bastante tempo e dificilmente haverá consenso em uma sociedade tão múltipla e eclética como a brasileira. Independentemente disso, ao menos do ponto de vista legislativo, não se pode prescindir da segurança jurídica sobre aquilo que é permitido ou proibido. Contudo, o que se viu no ano de 2024 foi um grande retrocesso a respeito do assunto.
Logo em abril houve a primeira surpresa. Uma Resolução do Conselho Federal de Medicina (nº 2.378/2024) proibiu todos os médicos de realizar a chamada assistolia fetal – ato realizado por meio da administração de medicamentos que provoca a morte do feto antes da interrupção da gravidez – nos casos de aborto oriundo de estupro, quando houver probabilidade de sobrevida do feto em idade gestacional acima de 22 semanas. Sem qualquer respaldo legal, o CFM afrontou a previsão já existente desde 1940 para o aborto legal – criando barreiras para a realização do aborto por vítimas de estupro que já encontram inúmeras dificuldades para a prática do procedimento, diante das poucas unidades de saúde que o oferecem e das inúmeras condições impostas ilegalmente por aquelas que se dispõem a fazê-lo, como a apresentação de Boletim de Ocorrência ou a existência de processo em curso contra o agressor. Sob a alegação de ser este um ato “profundamente antiético e perigoso em termos profissionais”, a assistolia passou a ser proibida em âmbito nacional.
Em maio de 2024, ao analisar uma ação ajuizada perante o STF para contestar a Resolução (ADPF 1141), o Ministro Alexandre de Moraes determinou a suspensão de todos os procedimentos judiciais, administrativos e disciplinares instaurados com fundamento naquele ato normativo e proibiu a instauração de procedimentos futuros.
No Plenário da Corte, o Ministro André Mendonça divergiu do Relator e houve pedido de destaque pelo Ministro Nunes Marques, suspendendo-se a continuidade do julgamento iniciado para referendar a decisão liminar.
No mês seguinte, o aborto legal sofreu mais um ataque. O requerimento para tramitação de urgência do Projeto de Lei 1904/2024 foi aprovado pelo Plenário da Câmara dos Deputados em votação simbólica sem contabilização de votos, que durou pouco mais de vinte segundos. Com isso, o projeto deveria seguir o trâmite do processo legislativo sem passar por comissões técnicas e sem qualquer contribuição de especialistas no assunto.
O conhecido PL do aborto pretende modificar o Código Penal ampliando as hipóteses de aborto ilegal para duas novas situações: quando for constatada a viabilidade fetal ou nas gestações acima de 22 semanas, situação em que essa viabilidade fetal é presumida. Nesses casos, a pena é elevada em comparação ao que é previsto atualmente, passando a ser de 6 a 20 anos de reclusão. Hoje, para a gestante que pratica o aborto em si mesma, a pena é de reclusão de 1 a 3 anos e para o terceiro que realiza o processo abortivo com o seu consentimento é de 1 a 4 anos, chegando a penas de 1 a 10 anos de prisão para aquele que aborta sem consentimento.
A truculência do projeto de lei é facilmente percebida pela sua própria redação, ao prever que nas hipóteses determinadas “as penas serão aplicadas conforme o delito de homicídio simples”. A pretensão do Relator Deputado Sóstenes Cavalcante é realmente transformar aquele que aborta em um verdadeiro assassino.
O projeto de lei ainda limita hipótese já prevista em lei desde a entrada em vigor do Código Penal – que diz não haver punição do aborto praticado por médico quando a gravidez resulta de estupro – ao pretender que essa excludente de punibilidade não seja aplicada se houver viabilidade fetal ou se a gestação já contar com mais de 22 semanas.
Não fosse a intensa e imediata reação da sociedade civil, por meio de manifestações, protestos, artigos e pedidos de retirada do projeto do trâmite de urgência enviados à Câmara dos Deputados, o PL seria rapidamente aprovado e em pouco tempo viraria lei.
Diversos deputados tentaram impedir esse curso emergencial e, em agosto, conseguiram a aprovação da realização de audiência pública para maior reflexão e amadurecimento da proposta.
Novamente sem alardes a pauta do aborto voltou à cena no Congresso Nacional, desta vez em votação ocorrida no início de dezembro na Comissão de Constituição e Justiça da Câmara dos Deputados de uma Proposta de Emenda à Constituição do ano de 2012 (PEC nº 164/2012). De relatoria do então Deputado Eduardo Cunha, a PEC modifica o art. 5º, acrescentando uma singela expressão: “Todos são iguais perante a lei, sem distinção de qualquer natureza, garantindo-se aos brasileiros e aos estrangeiros residentes no País a inviolabilidade do direito à vida, desde a concepção...”.
A mudança parece inofensiva e não deveria, de imediato, provocar qualquer efeito nefasto na legislação. Aqueles que defendem a PEC argumentam que apenas se está a estender o conceito de vida ao feto, alargando a proteção constitucional. É o que registra a própria justificativa da proposta. O legislador aqui estaria, portanto, fazendo o bem, sem qualquer supressão de direitos.
Basta, contudo, uma leitura atenta do texto proposto e do contexto político e social em que vivemos hoje para se compreender qual o real objetivo desta proposta. Não se trata de PEC da vida, mas sim de PEC do aborto, ou melhor, contra o aborto. Frustrado, por ora, o PL 1904/2024, a bancada dos conservadores fez nova ofensiva contra as mulheres, de forma mais estratégica e, aparentemente, menos radical.
Sob uma perspectiva sistêmica do ordenamento jurídico brasileiro, já de início nota-se que a PEC se revela desnecessária diante das proteções já previstas ao nascituro. O próprio Código Civil prevê em seu art. 2º que a “personalidade civil da pessoa começa a partir do nascimento com vida; mas a lei põe a salvo, desde a concepção, os direitos do nascituro”. De igual modo a Convenção Americana de Direitos Humanos, da qual o Brasil é signatário, prescreve em seu art. 4º que “toda pessoa tem o direito de que se respeite sua vida. Esse direito deve ser protegido pela lei e, em geral, desde o momento da concepção.”
Se o feto então já tem, de um modo ou de outro, garantidos os seus direitos, não haveria necessidade de garantir constitucionalmente essa proteção. Mas é a partir dessa mudança, se implementada, que anos de evolução na defesa da dignidade humana das mulheres e da sua autonomia decisória e liberdade de escolha podem virar pó.
Como se sabe, o art. 128 prevê o aborto nas hipóteses de risco à vida da gestante e quando a gravidez resulta de estupro, somando-se a essas situações por decisão do STF as gestações de fetos anencéfalos (ADPF 54). Com a nova disposição constitucional, provavelmente juízes passarão a negar, nos casos concretos sob sua responsabilidade e condução, os abortos legais, criminalizando a conduta de médicos e gestantes nessas condições. Sob o fundamento de inconstitucionalidade desse dispositivo, muitas serão as condenações, em especial das mulheres vítimas de estupro.
Por certo que tal movimento não gera a declaração de inconstitucionalidade da previsão legal em absoluto e para todos, fazendo-se necessário o apresentar uma ação perante o STF para se obter esse resultado. Mas já é um passo largo na contramão dos direitos das mulheres.
Especificamente sobre essa pretendida mudança na redação do art. 5º da CF, é importante que se lembre que o conflito entre direitos fundamentais e valores constitucionais sempre existiu, sendo imprescindível um balanço entre eles para se decidir qual deverá prevalecer em cada caso. E prever o direto à vida desde a concepção não anula o exercício dos direitos das mulheres à dignidade humana, à saúde e à liberdade, todos garantidos constitucionalmente.
O que ocorre no aborto legal é a permissão do legislador de uma conduta que, muito embora viole os direitos do feto – ou a sua vida, para aqueles que assim entendem –, está a proteger os direitos da mulher. Um exemplo muito próximo a essa situação é a legitima defesa, na qual o legislador impede uma pessoa de ser responsabilizada criminalmente por um ato atentatório à vida de um terceiro quando agir em defesa de sua própria vida.
Perante o STF, a ADPF 442 que discute a constitucionalidade do crime de aborto e teve seu julgamento iniciado em 2023 com voto da então Ministra Relatora Rosa Weber pela descriminalização do procedimento em casos de gestações até a 12ª semana, seguiu sem continuidade ao longo do ano de 2024.
Enquanto essas sucessivas investidas contra o aborto acontecem, os números de mulheres que se valem desse procedimento só sobem. Segundo dados do Ministério da Saúde, o número de abortos legais realizados pelo SUS cresceu 71% nos últimos 5 anos. Em 2018 foram feitos 1.570 procedimentos, enquanto em 2023 o número subiu para 2.687. Diariamente são realizados cerca de 7 abortos legais por dia na rede pública de saúde. Na faixa etária de jovens de até 14 anos, constam 1.140 casos de aborto no país, desde 2007 até 2023. Entre 2021 e 2023, a média nessa faixa etária é de 133 registros por ano.
Os números são igualmente alarmantes quando se trata de estupro. O Anuário de Segurança Pública de 2024 registrou novo recorde no número de estupros consumados no ano de 2023: são 83.988 vítimas. De acordo com os registros policiais, o país registrou um crime de estupro a cada 6 minutos. E pior: a faixa etária com maior taxa de vitimização é a de crianças e adolescentes de 10 a 13 anos, cuja taxa chegou a 233,9 casos para cada 100 mil habitantes neste grupo etário.
É inconcebível que nossos legisladores ignorem essa triste realidade. Nossas mulheres e meninas não devem sofrer processos criminais, muito menos cumprir pena de prisão. Elas precisam de proteção e acolhimento. Não são assassinas e sim vítimas e como tal merecem ser tratadas. Que 2025 reserve um cenário mais esperançoso para o debate desse tema no Brasil.
*Maíra Beauchamp Salomi é advogada criminalista, doutoranda e mestre em Direito Penal pela Faculdade de Direito da USP e sócia de Salomi Advogados