A colaboradora Ivy Farias compartilha um relato de dor e amor sobre o aborto
Ivy Farias* Publicado em 12/08/2022, às 06h00
Há um mês o noticiário internacional tem sido tomado por um debate urgente e necessário mas que demanda uma interpretação de texto mais profunda quando pensamos no contexto brasileiro. O aborto, tema tão falado nos Estados Unidos com o caso Roe versus Wade tem, na língua inglesa, o sentido de interrupção voluntária de uma gestação enquanto em português a mesma palavra invoca o também não consentido, chamado de espontâneo.
Esta nuance semiótica faz toda a diferença quando se pensa no que cada processo representa no corpo e na vida de uma mulher- e como ela é recebida pela sociedade e seus sistemas como o de saúde e o jurídico. No Brasil aborto é crime com pena de detenção de até três anos para quem provoca em si mesma ou de reclusão de até dez anos sem o consentimento da gestante (no caso de consentimento, a previsão é de um a quatro anos).
Na prática isso significa que se você, como eu, perde uma filha aos quatro meses de gestação no banheiro da sua casa, se for para o pronto socorro pode passar por inúmeros constrangimentos como xingamentos, gritos, ameaças e até ser denunciada para a polícia.
Em inglês, aborto espontâneo é traduzido como miscarriage (“perda daquilo que estava sendo carregado” literalmente). Em português, no Brasil a única certeza é de não saber o que vai acontecer contigo em casos como o meu. Digo isso porque a experiência é um caminho pedagógico que nos conecta às veredas de outras pessoas que passaram pela mesma trajetória de dor e relatam as mais profundas feridas quando buscam um atendimento de saúde: uma delas é ficar em tratamento junto com gestantes e seus bebês- raros são os hospitais que separam.
Já em francês a palavra composta fausse-couche significa, por exemplo, que um aborto espontâneo antes da 20ª semana lhe dá direito a passar três semanas de licença no Canadá. Nestes casos não há remuneração mas, se for após o período das 20 semanas, o governo do Quebec paga até 18 semanas para se estar em casa.
Dentre estes exemplos mínimos, é importante lembrar também dos máximos como El Salvador, país em que eu poderia ter sido presa simplesmente por não ter levado uma gestação a termo: lá, nove mulheres estão presas por terem sofrido um aborto espontâneo.
Quanto mais falamos sobre o controle do corpo das mulheres, menos nos esquecemos das suas infinitas peculiaridades e de como isso nos afeta de formas diferentes. Enquanto pensava naquilo que sabia, como as legislações ao redor do mundo, imaginava aquilo que não sabia. A dor do não saber é uma das piores que você pode ter: a dor do não saber sua data de nascimento e ter em seu lugar a lembrança de sua precoce partida. A dor do não saber como será sua reação na próxima gestação quando busca-se curar do trauma da outra. A dor do não saber se multiplica quando olhamos para as possibilidades da vida. Ela subtrai muito de sua existência pela via do medo enquanto soma mais e mais sentimentos anonimizados em uma sociedade como a nossa.
E, dentre o não saber pessoal, saber o que é real quando se aborta no Brasil é muito cruel. Em qualquer situação.
“Em que escola minha filha estudaria” ou como “seria o seu cabelo?” são algumas das perguntas que me fiz enquanto escrevia este texto. O fato de não respondê-las, porém, não significa que isso as silencie. E é justamente no silêncio que direitos são perdidos- ou corrompidos. Falar sobre o tema em uma direção enquanto todos olham para outra é, no fim, garantir o que toda mulher deveria ter: segurança, respeito e controle sobre seu corpo e suas decisões, sejam voluntárias ou não.
Há diversas proposições legislativas sobre o aborto no Brasil. Não se perder na tradução de seus múltiplos significados deveria fazer parte de todas elas.
*Ivy Farias é advogada, escritora e jornalista. Seu e-mail é falecom@ivyfarias.com